domingo, 1 de novembro de 2020

Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples


Isso é o quinto verso dum poema do aniversariante de ontem, Drummond, cujos 118 aninhos desnaturadamente não celebrei em público, apenas na contenteza do agradecimento íntimo. O significativo é que o poema se chama "O sobrevivente" – e quantos se sobreviveram na mesma medida que Drummond, a ponto de, um século e uma maioridade depois, continuarem de uma atualidade estarrecedora? "Os homens não melhoram/ e matam-se como percevejos./ Os percevejos heroicos renascem./ Inabitável, o mundo é cada vez mais habitado./ E se os olhos reaprendessem a chorar seria um segundo dilúvio": versos do mesmo texto, contemporâneos como um tapa na cara.

Há máquinas terrivelmente complicadas para as necessidades mais simples, meio constatou e meio profetizou o poeta, que não chegou a viver para ver aparelhinhos que deveriam servir-nos tomarem nossa vida pelo cabresto. OK, ele viu rádio, viu televisão e otras cositas más, já bastantemente precursoras do ajustamento de nossas agendas e calendários a pequenos tiranos eletrônicos; porém não pôde supor, acredito (vai saber quanta clarividência existe numa genialidade tamanha!), o que viríamos a ser quando escoltados por computadores pessoais, internet e a fatídica síntese computadores pessoais + internet + bolso. Até 1987, ano da morte do autor, não era possível aos reles sapiens de esquina sequer COGITAR que, em 2020, andaríamos com imensa parte do conhecimento (e do desconhecimento) da humanidade a tiracolo – e também com todo o peso emocional correspondente ao antigo peso físico desses saberes.

Não sou contra tecnologia, evidentemente; não estaria aqui digitante e internáutica se fosse. No entanto, não há como deixar de entrever perversidade no uso hipnótico, manipulador e apatetante dos smartphones que – como típicos senhores – fazem as colunas da coletividade vergar-se diante deles. Quem dera fosse eu a implicante que identificasse apatetamento, mas não sou euzinha quem diz, é o neurocientista Michel Desmurget (diretor de pesquisa do Instituto Nacional de Saúde da França); segundo Desmurget, "os nativos digitais são os primeiros filhos a ter um QI inferior ao dos pais" – algo documentado em países que apresentam fatores socioeconômicos favoráveis, diga-se de passagem: França, Noruega, Dinamarca, Finlândia, Holanda etc. Ou seja, até nesses supostos edens civilizatórios se dá a abdução tecnológica, a fuga para a Nárnia digital; o resultado – aponta o cientista – é a "diminuição da qualidade e quantidade das interações familiares, diminuição do tempo despendido em outras atividades enriquecedores (trabalhos de casa, música, arte, leitura etc.), interrupção do sono, superestimulação da atenção, subestimação intelectual e um estilo de vida excessivamente sedentário". Só lindeza. Com nossas necessidades simplíssimas de descanso, beleza, família, atividade física e cultural impostoramente cobertas por essa serpente de tela infinita, não admira estejamos sendo progressivamente expulsos do paraíso. 

Mas que paraíso?, o leitor sensato levanta as mãos, de que paraíso estamos por acaso saindo? Não estamos saindo de nenhum, é verdade, porém me permita acreditar que estamos (ou estávamos) indo para um, inevitavelmente. Call me crazy; realmente penso que o ser humano é fadado à evolução, e que sua inteligência assombrosa se destina a melhorar as coisas, apesar de todos os tropeços, de todos os dois-passos-pra-frente-um-pra-trás. Em algum momento a gente chega lá, se continuar operando nas CNTP. Mas já existe essa inquietante percepção de que andamos escorregando das CNTP; o documentário O dilema das redes (não consigo não citá-lo de novo, é obrigatório) demonstra mesmo que não simplesmente nos desviamos da rota, mas somos desviados como sistema – nos BOICOTAMOS como espécie, em bom português; e o estudo de Desmurget corrobora amargamente a tragédia que esse vício algorítmico vem preparando. Se não retomarmos o quanto antes, na munheca, as rédeas de nossas necessidades reais (e não geradas pela análise terabáitica de nosso perfil), corremos um risco vergonhoso de darmos ré em direção às cavernas. Vindos diretamente da Caverna.

Só nos salvará saber que: é sobre nosso pescoço, não sobre nossas mãos, que repousa a máquina do mundo.

Nenhum comentário: