segunda-feira, 23 de novembro de 2020

Mude apenas um


O padre da missa de ontem (virtual, gente! por enquanto, exclusivamente virtual!) dizia que muitos costumam chegar para ele e declarar: tenho não sei quantos defeitos, sou fofoqueiro, mentiroso, raivoso etc. E a recomendação do sacerdote tende a ser: no momento – ou no ano que está principiando –, entre seus defeitos, mude apenas um. Dedique-se a deixar de tecer fofoca, por exemplo; em conseguindo, adote como meta de ano-novo se livrar da mentiralha; deu certo? siga a lista e ataque os próprios ataques de ira; e assim por diante. Se prometer mudar tudo de uma vez, vai acabar desistindo e não mudando nada (observou o padre com irrefutável sabedoria); com este sistema de foco, no entanto, em dez anos você terá se aperfeiçoado em dez pontos, o que não é nada mau. Reforme cada pedacinho a seu tempo. 

Achei fenomenal o conselho – embora fronteirize perigosamente com o álibi para adiar transformações inadiáveis: agora não, agora não, estou no Ano do Combate à Vontade de Sentar a Mão na Cara, eu nem queimo suficiente glicose para me tornar honestíssimo simultaneamente. Parto aqui do princípio, porém, de que o adotante do método encare a coisa de boa-fé e admita que falhas de caráter no limiar do crime não podem esperar sequer um diazito, uma hora; nada que potencialmente devaste o mundo alheio é um problema para depois. Dentro do sistema sugerido pelo padre, cabe a prorrogação por mais de ano, só e especificamente, àquelas bombas que tiquetaqueiam com paciência de longo prazo, que permitem ou até pedem um lento desarme, fio a fio, parafuso a parafuso: a criatura insegura demais para expressar opinião; a criatura molenga demais para abandonar o sedentarismo; a criatura que é tomada de ciúme mas nunca o demonstra, consumindo-se no íntimo por outrem (se demonstra maniacamente, aí já é caso de emergência clínica); a criatura que não senta para estudar e incrementar a carreira; a criatura que pretende resgatar uma proximidade com os filhos. Esses e semelhantes seres podem investir num processo um pouco mais esparramado no tempo, espichadinho o bastante para que a cura se vá tornando costumeira, fixa, definitiva. Em várias várias várias situações, é preciso que o sangue esteja inteiro circundando e oxigenando a dificuldade; é preciso que o coração se jogue pleníssimo na treta, sem agendas irreais e sem muitas demandas de outra ordem. 

O efeito bomlateral do sistema é que não se atinge uma melhora única; por mais que se ande focado num só desafio escolhido, melhorar é verbo englobador por natureza, gregário, trazedor de outros verbos em equipe. Melhorar com relação à atividade física revigora a autoestima, revigorar a autoestima tonifica o discurso, tonificar o discurso ajuda com os amores e os filhos, evoluir com os amores e filhos clareia a estrada dos estudos, mergulhar nos estudos bomba mais a autoestima, o discurso, as percepções, as relações, as construções. Se alguém psiquiatriza suas inseguranças, fatalmente acabará pegando o jeito de abordar invejas e ciúmes, talvez até de arrancá-los na raiz; se resolve treinar o corpo para a maratona, é quase certo que deixe os neurônios mais turbinados e os afetos mais doces, mais serotoninos; se arrisca voltar para a faculdade, provavelmente há de criar laços fundamentais de trabalho e amizade, quem sabe descobrir mentores, quem sabe ter a epifania dum caminho com novíssimas metas. Toda evolução é um arrastão de evoluções; tudo em nós, da circulação ao cérebro, dos nervos aos brônquios, do saber ao amar, do esperar ao aspirar, do entender ao pretender, opera em rede.

Sermos várias fontes multiplica nossa sede.

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