segunda-feira, 30 de novembro de 2020

Surpreendentemente


Sim, é surpreendente insistir vida. Também o acha a poeta portuguesa Dalila Teles Veras, ao observar com ternura que as faxineiras do edifício 

"surpreendentemente 
(não obstante os dez mil, quatrocentos e trinta e um degraus,
os oito mil, trezentos e vinte metros quadrados de piso, as 
quatrocentas e quinze vidraças e as três toneladas de lixo à 
espera de varrição, transporte e limpeza)
cantam..."

Surpreendentemente, a pulsão de existir não cede; não se desgarra. Surpreendentemente, moradores de comunidades e periferias seguem espocando danças, risos, ritmos, literaturas, grafites e tudo mais que pode nascer colorido na invenção humana, apesar de milícias, tiroteios, insaneamentos, escrachos policiais aguardando na esquina. Crianças seguem mochilando para as escolas, usando régua para traçar as lacunas a serem preenchidas, cheirando os cadernos novos, desenhando corações e bonequinhos nas margens. Mamães/papais primeiro-viajantes continuam embrenhados em felicidades e fraldas. Senhores, senhoras, senhorinhas continuam pegando dicas de internet com os netos. Nutrindo os netos. Maternando os netos.

Surpreendentemente, tomadores de cafés e trens da madrugada abrem a porta das lojas conversando alto e forte. Taxistas enfrentadores de trâââânsito não deixam de transbordar assunto. Motoristas galhofam cordialmente de ônibus para ônibus, embora imersos em calores de Vesúvio. Professores dão nó, pintam, envernizam e fazem escultura em pingo d'água para educar filhos alheios enquanto são achatados pelo governo e pela mídia. Garçons mestre-salam entre sorrisos e bandejas. Garis sambam e rodopiam com as vassouras. Guris soltam pipa na laje pela chance de colorir os dias. 

Surpreendentemente, manifestantes manifestam-se com a teima e a alegria de quem desconhece balas de borracha e gases de pimenta. Candidatos candidatam-se (ainda poucos, mas alguns) com a intenção sinceríssima de atenuar disparates de fortunas. Militantes militam na rua, no zap, no Face, no telefone do avô e da tia, sem pausa e sem paga, alimentados apenas pela crença amorosíssima em ver gente morando, comendo, comprando, trabalhando independentemente de ser subornada com cesta básica por agentes da mesmice. Surpreendentemente, esperanças esperam, lideranças lideram, resistências resistem, desejos desejam; o espírito humano é coisa de adamantium, ninguém breca. Ninguém quebra. Arranha-se, não se interrompe, tropeça adiante. Adiante. Adiante.

Continuará a haver obstáculo. Mas: não obstante.

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