sábado, 28 de novembro de 2020

Atração fatal


Só hoje! Apenas hoje! Aproveite! Vai perder? 85% em todo o site! Vem que tá acabando! Última chance! Últimas horas! 12h 35min 44seg... 43... 42... 41...

Toda Black Friday (+ adjacências) é isso: esse terror, esse desespero. Lojas que costumam depositar na caixa de entrada seu mailzinho diário – às vezes porque você deu um rolê inocentíssimo e totalmente platônico no site, sem chegar às vias de fatura com um produto sequer – acordam possuídas, frenéticas, viradas numa entidade enviadora de spam; a gente deleta, deleta, deleta e os bichos procriam como gremlins molhados, especialistas em consumição psicológica. Sabem muito bem, os desgraçados, explorar a culpa. A cada mensagem, mais exclamações de urgência (um dia virão com a musiquinha de plantão da Globo, EU SEI), mais descontos jogados na cara, mais promessas de amor eterno, mais cobranças, mais contagens regressivas, mais chantagens; é que não abro a imensa maioria dos e-mails, mas tenho certeza de que os últimos devem incluir áudios de cornitude bêbada e alguns sussurros de "seven days...". Um banquete de ansiedade servido frio em pleno tribunal.

Funciona? Funciona, claro, ou não nos cutucariam com tanta violência. A insanidade que habita o mercado saúda a insanidade que habita em nós, seres condicionados desde as fraldas a estender a mãozita para todos os estímulos: dááá! Tudo fomos treinados para cobiçar, pedir, apetecer – algo instigante no desenvolvimento infantil e funesto no desenvolvimento do consumidor; há tempos já não era para respondermos a luzinhas e barulhinhos que nossos tutores nos sacodem diante do nariz, porém lá vamos nós, atiçados, pavlovos, capturáveis, prontos a concordar com a existência de alguma fome a partir do cultivo de uma salivação. Não desejamos perder nada de que não precisamos, não nos puseram confortáveis para abrir mão de nada que nunca possuímos; todas as portas nos aparecem como obrigatórias, já que sua mera e muda presença ilustra o fato de que ALGUÉM passará por elas – e as gotas de Corridamalucol que diariamente pingavam em nossas mamadeiras nos fazem querer garantir que seremos nós.

A tal ponto fomos estocolmizados que chegamos a bendizer como vantagem o assédio sofrido: ueba, esperei até o último segundinho e – 8.427 e-mails-com-cupom depois – consegui aproveitar a melhor promoção! (sendo aproveitar, no caso, finalmente ceder ao inferno tsunâmico de mensagens e anúncios que pisca-piscam no meio de qualquer página consultada, além de gastar dinheiro imprevisto com algo que poderia alegremente continuar na categoria do sem). Celebramos o sequestro de nosso foco, atenção, energia, e pagamos radiantes o resgate; e pagamos o resgate apenas para assegurar nossa assinatura nesse camarote das trevas que é a lista preferencial das empresas. Pagamos pelo posto de cliente VIP apenas para sermos mais perseguidos e atormentados que os outros. Pagamos para nos ver stalkeados, espionados, atalaiados, abelhudados, lidos e invadidos até em pensamento; pagamos para ver necessidades produzidas e amplificadas, neoproblemas surgidos, desequilíbrios plantados na cabeça e no cartão.

Capitalismo – de capital Masoquistão.

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