quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Desâncora


Não sei bem se é verdade, mas fiquei tocada e encuriosada ao ler palavras do poeta caribenho Derek Walcott, que decreta: "Se você já sabe o que vai escrever quando está escrevendo um poema, então o poema vai sair fraco". Não sei bem se é verdade crendo, porém, que seja; a poesia, afinal, é talvez a parte lúcida do humano adulto que mais temerariamente se debruça sobre seu vulcão deslúcido, que mais de perto flerta com o descontrole e o sonho sem chegar a se estatelar no abismo. Fica difícil conceber conto, romance, roteiro, discurso que não saibam bem direitinho como vão e para onde vão, ainda que haja repensamentos, redirecionamentos ao longo do processo; planos mudam, personagens nascem, ideias são espanadas e substituídas, mas há as linhas gerais servindo de norte e de superego, há um objetivo específico esperando na faixa com a bandeirinha na mão. No poema – se lírico – a essência é que exista mais passeio do que transporte, mais mochilagem do que projeto. É bagunça? de jeito nenhum; nem displicência, muito menos amadorismo. Tem que haver muita estrada de poetação para que o poeta possa confiar em seu moderado delírio. Tem que haver muito conhecimento e conforto no reino das palavras para que um colega de Drummond se atreva a penetrar esse formidável reino surda e cegamente.

Em verdade, sabemos, não ocorre delírio ou cegueira no trabalho de parto dos versos; como fingidor tarimbadíssimo, o poeta é e não é totalmente sincero nem no ardor nem no cálculo, nem no surto de inspiração nem no de contenção. O poeta só consegue bem-sucedidamente ser poeta porque, ao sê-lo, mente o tempo todo. O-TEM-PO-TO-DO. Mente tanto ao dizer-se ou dizer-nos que cada pequeno rumo do texto já estava previsto – quanto ao dizer-se ou dizer-nos que foi tudo fruto de uma possessão pelas musas, uma febre dos sentidos, um transe sideral. Mente como um Chapolin se garantir que "todos os seus movimentos são friamente calculados", mente como um líder de seita se jurar que não passa de revelação cósmica. Nada, nenhuma das opções é honesta; caso uma seja, é quase certo não sair poema que preste. Lembra aquela história de que "sexo é poesia"? pois então: imagine-se um ato de transbordamento e amor integralmente roteirizado, ou um que se constitua do mais completo atabalhoamento adolescente e zero técnica – e por aí se intua o que seria o correspondente poético com cem ou necas por cento de previsibilidade. Artes (quaisquer) são esfinges com patas e asas; em faltando umas ou outras, dificilmente alguma parte de nós as devora.

Poesia exige vontade direcionada e loucura atenta. Por mais que existam Índias em vista, buscadas e miradas, nada impede que um desvio de paixão e momento venha a dar no Brasil. Nada impede que versos preliminares se mostrem tão competentes de beleza que a rota mude, completamente mude, maravilhosamente mude, a ponto de não haver saudades do imaginário trajeto: todo lugar exubera riqueza para quem sabe averiguar. O poeta é não só fingidor nato, mas ajustador profissional, adaptador de berço, líquido de nascença para espreitar novas frestas e se interessar por improvisados caminhos, e se for o caso germiná-los, flori-los, semear no árido e inesperado – pastorear nuvens como Cecília, esculpir Pasárgada como Manuel, desdobrar-se como Adélia, passarinhar como Mario, respirar um arco-íris de ar em águas profundas como Hilda. Poeta é caravela de ideia desancorada; mapa: tem; bússola: confere; voo de borboleta mudando o vento: tem também, e por causa desse talvez qualquer ademais é cais, qualquer chegada é porto.

Navegar é (im)preciso.

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