quarta-feira, 10 de março de 2021

O Monstro


Ele é o maior perverso de nossos tempos, que do primeiro abrir ao último fechar de olhos do dia respira tão mais feliz, tão mais longamente satisfeito quanto mais vítimas faz. Tudo que vive (fora uma meia duziazinha de cabeças salpicadas pelo mundo) lhe é inimigo por natureza, e pode, quando muito, ser tomado como ajuda eventual e estratégica no palanque, emprestar com inocência seu verdor e seu oxigênio para disfarce dos propósitos mau-mocistas do Monstro. Não importa nadíssima que o Monstro fale ou faça olhando bonachonamente em direção à câmera; não importam em absoluto quantos tapinhas distribua, convincente e carismático; cedo ou tarde – inevitavelmente cedo – ele trai, trai grosso, trai firme, trai rude, trai sociopata e sorridente como se nem. Porque, em seu ensurdecedor vácuo de opinião, realmente nem.

O Monstro bate continência à bandeira necessária, dá mesmo de ombros se uma suástica a marcar bem no peito; que diferença? qualquer símbolo, qualquer brasão, qualquer escudo, qualquer camisa de time lhe convém igualmente, sem esses aborrecidos encargos da lealdade (porém minto: vermelho é menos frequentemente de seu gosto, em especial se associado a instrumentos de trabalho específicos. Mas nada que não seja negociável, ajeitável, discutível até em mandarim). O Monstro – monstro sendo – não direi que tenha as preferências, antes tem as lógicas mais escabrosas; já seria horrendo o bastante se permanecesse em gelada indiferença aos que morrem de pandemia, e não, nem essa cruel neutralidade o define, uma vez que ele ESCOLHERIA a atual situação caso lhe perguntassem. É pollyânnico dizer que as mortes não o comovem: as mortes lhe agradam. Menos aposentadorias a serem pagas, ele saliva. Menos pensões, auxílios emergenciais e seguros-desemprego, ele celebra. Não vê filhos, pais, histórias, amores, famílias – vê números sem sangue nas veias e sem coração engordando o prato mais conveniente da balança.

O Monstro, por outro lado, todo se dói quando injustiças principiam a desemaranhar-se e raia alguma mínima estrelinha talvez-porventuramente propícia à sorte dos que pesam no prato inconveniente. O Monstro então esperneia no chão feito menino birrento, se debate chantagista e escandalizado que nem todos lhe cedam e lhe sacrifiquem absolutamente tudo, que nem todos se curvem muito adestradinhos à sua pseudo-onipotência mimada. Como aplacá-lo em seu showzinho de fúria? garantindo-lhe que pronto, pronto, passou, ninguém vai voltar a comer e viver e estudar se nenê não quiser, se nenê não se sentir confortável; a gente já combinou com a Cuca e ela vem pegar. Para sossegar nenê, logo lhe prometem mundos sem fundos e a posse contínua de seu brinquedo favorito – sua bolinha azul sempre estranhamente murcha num hemisfério e gorda no outro, como a manha do Monstro faz questão. Um motivo impertinente leva o Monstro malcriado a conservar assim a bolinha, e já toda a gente em volta, conformada aos caprichos do tirano ranhento, decidiu achar natural que a bola seja mantida assim desigual, esdrúxula, barroca. Não somente achar natural: DEFENDER com paixão que assim seja. Tanto e tão domesticadamente que se pode, não sem perplexidade, catalogar como seita esse povo vampirizado que oferece feliz a jugular enquanto o Monstro pirracento o explora, suga, cega, desumaniza, insulta, desonra, descama.

(Mercado – que o menino chama.)

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