segunda-feira, 29 de março de 2021

Desmatéria


Estava lendo, inconfessamente encantada (porque se trata de fisquímica, né, a gente de humanas não pode ficar dando essa pinta de graça), sobre materiais extraordinários desenvolvidos ou descobertos por cientistas, com as particularidades mais maravilhosas: um gás – hexafluoreto de enxofre – que sustenta objetos levinhos como se flutuassem e deixa mais grave o tom de voz; uma espécie de gelo quente – na verdade, acetato de sódio; metais que derretem ao toque de nosso corpo; pós que explodem a qualquer batidinha; lâminas de madeira programáveis para assumir um formato específico em contato com a água; substâncias dotadas de microcápsulas com bactérias que preenchem as fissuras sofridas; e meu favorito: o aerogel "duro, transparente, resistente a altas temperaturas" cuja densidade "é apenas 1,5 maior que a do ar, e 500 vezes menor que a da água" – praticamente uma fadinha sólida. Lindezumes da natureza e do laboratório que mostram o quão risíveis parecem, em 2021, aquelas aulitas da segunda série em que falávamos dos três estados da matéria, no auge de nossa ingenuidade millennial.

Não sou física, não sou química nem pretendo ter qualquer parentesco profissional com inventores de coisas e substâncias úteis, embora obviamente bata palmas para a ciência de pé, em cima da cadeira – ou da mesa: uma pegada mais Sociedade dos poetas mortos –, sob fogos de artifício e projeções de luzes coloridas dançantes. Admiro ajoelhadamente os capazes de fazices utilizáveis no imediato; mas é que eu, feito Manoel de Barros, calhei de nascer apanhadora de desperdícios, tendente ao desimportante, ao inutensílio, à velocidade das tartarugas muito mais que à dos mísseis, e agora não tem jeito: para eu elaborar qualquer troço que se aproveite, força é que ele não se aproveite para nada. Não faz mal, fico aqui muito satisfeita constatando uns substantivos abstratos, quieta e inofensiva. Alguéns, afinal, têm de assumir vaga no departamento de desengenharia que não sustenta o mundo, mas o torna suportável.

Declaro então a existência imaginária duma capinha muito opaca de desnitidez sob a qual o olho acorda; uma capinha tecida com placenta de sonho recente e, possivelmente, algum tanto de névoa. Sua função fininha é ser simplesmente atravessada por nós para reinauguração da vida consciente, toda santa vez. Declaro também a existência de cabelos que nos habitam e não são cabelos, são feitos de material fantasmático e impostor, fios de ectoplasma com mero toque de queratina – para quê? para irritar, naturalmente; ou (usemos de boa vontade científica) para manter o cérebro malhado de estímulos ao tentar, com fúria, identificar onde catapimbas se localiza a MUNDIÇA de cabelinho que pinica no rosto sem se deixar apanhar. Declaro igualmente que existem colas misteriosas, duma energia intangível, a linkar inescapavelmente determinados cérebros a determinados trechos de filme, de modo tão decisivo que não importa o que se faça: pilha-se a história SEMPRE no mesmíssimo ponto, com margem de erro de dois frames para mais ou para menos. Dada a imponderabilidade do visgo, não há solvente que se conheça; o procedimento padrão é cabo-a-rabear uma sessão de streaming para promover o desencalhe desse Evergreen ficcional.

Existem substâncias outras que compõem a insustentável leveza do mundo, e olha que às vezes nem do mundo são: as fibras de luar que puxam para o céu olhos e marés, as pirlimpimpices de estrela que embebedam quem está deitado na grama, a película de memória que reveste nossa linguagem logo após a leitura dum autor preferido, a película de linguagem que reveste nossa memória logo após um filme prodigioso, a falsa tocabilidade de imagens e textos que não se encontram em papel, o ventinho minúsculo de quando voa a borboleta, a vaguidão colorida de que é tricotado o arco-íris, a dor que dói e não se sente de saudades e amores, as faíscas de medo prateado que espocam nas conversas importantes. Essas moléculas do que praticamente não há e que, no entanto, confecciona praticamente tudo que havemos de ser.

O que quase-não-é também tem muita força.

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