terça-feira, 2 de março de 2021

Arremesso de frustração

Impressionou-me um pequeno desabafo anônimo que vi num desses sites tão cheios, mas tão absolutamente balofos de curiosidades e matérias diversas que uma acaba puxando outra, puxando outra e, quando se vê, não se tem mais a menor recordação de qual foi o primeiro link a nos atirar para dentro dessa cama de gato tresloucado-informativa. Mas enfim – impressionou-me, em meio à bagunça do feed, o depoimento duma pessoa a respeito de certa mania familiar realmente entojada, cuja menção deve encontrar eco solidário na maioria de nós: "Ahhhh, não me canso de escutar como eu era uma gracinha na infância: uma criança carinhosa e feliz. E de como, hoje, mudei e estou horrível: 'nossa, o que aconteceu com você?!' Bom, eu amadureci, desenvolvi minha personalidade e lapidei minha própria opinião. Por quanto tempo mais precisarei ouvir o quanto eu era conveniente para você antigamente?".

Adultos que nos precederam na adultice, adultos quaisquer que há muito fazem parte de nossas vidas: apenas parem – não de fazer parte de nossas vidas, naturalmente, e sim de utilizar esse histórico em comum para ensaiar uma espécie de usucapião sobre o que somos. Não sei se estão cientes ou se lhes é apropriado fingir que não, mas pareceria bastante doentio e preocupante que um indivíduo neurotípico se apresentasse, aos 40 anos, como um perfeitíssimo retrato do que era aos 6 (ou aos 13, ou aos 27). Até compreendo o componente de nostalgia que pais, tios e avós, em especial, jogam em determinada fase da vida, quando os elementos mais jovens do clã tendiam a ser mais maleáveis, mais próximos, mais confiantes, menos ausentes; ainda assim não posso abraçar como justo, ou como intelectualmente honesto, projetar essa frustração nas versões atualizadas dos ex-pequeninos. Tornou-se súbita novidade o fato de as crianças crescerem? Não. Era esperado e desejado que houvesse transformações diárias a partir do momento em que abandonaram o útero? Era, imagino. Então com que direito se esfregam saudades pessoais – talhadas para brincarem no cercadinho da boca para dentro – na cara de gente que já está tendo um trabalhão se desenvolvendo e se adaptando ao mundo para ainda ter de arcar com a culpa de ser "uma decepção" para alguns?

Óbvio, não se discute a inevitabilidade de se suspirar pelos velhos tempos, de se perguntar "o que deu errado", quando a antiga criança carinhosa e feliz embarca numa trip totalmente fora da curva e vira um nazista, um estuprador, um torturador, um serial killer. Na condição de assídua espectadora de programas como Vivendo com o inimigo e Lobo em pele de cordeiro, aliás, canso de ouvir testemunhos dilacerantes de amigos e familiares que correram com aquela criatura no parquinho, viram-na ser coroinha, escoteiro, rainha do baile, alma da festa, e agora se mostram apropriadamente estarrecidos de saber que a mesma criatura metralhou colegas, sufocou a esposa, abusou de menores, protagonizou um escândalo horroroso de corrupção, participou de um ataque terrorista. Eu seria a primeira a permanecer em estado de choque se o jedizinho potencial mergulhasse tão fundo no dark side. Muitíssimo felizmente, porém, essas são as exceções das exceções; a maioria incontestável das flutuações de personalidade não inclui metralhar ninguém, e o que temos no dia a dia são as mudanças necessárias de quem evolui hormonal e cronologicamente, recebe um milhão de novas influências, ganha luzes inéditas nos estudos – cresce, enfim. Às vezes não apenas cresce por bem ou para o melhor; às vezes atravessa desertos amorosos, perdas, doenças, injustiças, rejeições, traições e demais atravancos de estrada que dificilmente cruzam despercebidos um caráter em formação (como se algum já estivesse formado com suficiência); às vezes enfrenta, inclusive, os efeitos nocivos do próprio demônio da comparação alimentado pelo parente insatisfeito e pela sociedade em geral. Comparações verbalizadas têm eficácia zerinha na resolução de problemas psicológicos e uma efetividade pujante na criação de outros.

Que conseguem os urubus da comparação explícita, dirigida à pessoa comparada? demonstrar incapacidade crônica de empatia e total desconhecimento, involuntário ou não, sobre as atuais circunstâncias da vida de quem se julga. Amassar autoestimas que talvez já viessem em estado crítico. Nublar o dia daquele a quem a análise é exposta. Minar confianças que teoricamente deveriam ser depositadas na família de maneira franca. Diminuir a percepção de felicidade. Aumentar a certeza da solidão. Ou seja: exibir uma escrotice intrínseca do avaliador não solicitado, a quem o avaliado (salvo haja necessidade de um perdão no processo) não tem o menor compromisso de agradar. Sim, é com você, fiscal da transformação alheia; nenhum parentesco, interesse ou pseudoamor dá passaporte para questionar a introversão, a profissão, a orientação, o peso, a viagem, a tatuagem de pessoas que não lhe demandaram o aval. Se não curtiu um desses algos que não é absolutamente da sua conta, desvomite, engula, grite a portas fechadas para o travesseiro.

Quem não abre a boca sem generosidade e sem urgência preserva um mundo inteiro.

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