domingo, 14 de março de 2021

14 de março


Há dessas datas misteriosamente, inexplicavelmente intensas, marcantes, históricas, verdadeiros ciclones de fatos e significações. O 14 de março pertence a essa família colossal; e, para minha colossal família de almas irmãs, vem assumindo uma de suas faces mais dolorosas já faz três anos: três anos do assassinato de Marielle Franco, estrela de ascensão franquíssima que teve arrancada ainda em broto sua trajetória.

Marielle viveu maravilhosamente permeada por uma das frases (e essências) mais lindas de todos os tempos, "Eu sou porque nós somos" – daí se tornar impossível não se sentir tocado pelo fato de Karl Marx ser um seu irmão de data de morte, justo ele, talvez o principal destrinchador dos meios de desunião e de opressão que ela nunca parou de combater. Outro ser completamente incrível que deixou o mundo num 14 de março: a professora francesa Lucie Aubrac, integrante da Resistência Francesa durante a ocupação nazista e militante dos direitos humanos, da igualdade entre os gêneros, da proteção aos imigrantes ilegais; alguém, enfim, que eu amaria ter longamente abraçado e pertinhamente conhecido. Não tenho a menor dúvida de que Marielle concordaria.

E os nascidos em 14 de março? trazem uma comoção arrepiante: Castro Alves, ninguém menos que ele, autor das mais dilacerantes denúncias poéticas do sofrimento negro rumo às e nas nossas terras; Abdias do Nascimento, escritor, professor, artista, ativista, jornalista, político, GIGANTE da cultura afro-brasileira no país e no mundo; Carolina Maria de Jesus (que aliás era xará de aniversário de Abdias até no ano), superfantástica autora de Quarto de despejo e outras obras de sensibilidade agudíssima. Três expoentes nossos de negritude, três potências, três poetas, três patrimônios, três forças do pensamento, três linguagens iluminadoras do que – em termos de história nacional e de vivências específicas – fomos e somos, de como nos construímos, de que veredas atravessamos. Três ícones dos muitos rios que desaguaram em Marielle: a consciência latejante da dor do outro, o trabalho acadêmico e social, o perfeito conhecimento da vida nas comunidades (quase impossível refletir nisso sem se impressionar com as convergências).

O 14 de março tem, ademais, a particularidade de ser chamado Dia do Pi, pelo simples motivo de sua notação à moda norte-americana – 3/14 – evocar o iniciozinho daquela constante numérica que todos conhecemos de escola: 3,141592653 etc. etc. etc. Isso é que também não pôde deixar de me comover, a ideia da CONSTANTE (toda razão entre o perímetro da circunferência e seu diâmetro dá em π, se não me falha a matemática) e a ideia do CÍRCULO, uma vez que ambas aconchegam muito, muito a biografia de nossa vereadora, toda feita de elos e persistências, rodas de debate e lealdades, circuitos amplíssimos de percepção e fidelidades às próprias origens. Marielle era infinitamente maior do que seu raio direto de atuação, seu perímetro abarcava e abarca onde houvesse humanidade – não eram as margens do Rio que a continham, tampouco a contêm, tanto que seu legado extravasou-se em âmbito planetário. Pena que dessa forma. O justo era que nem tivessem de ocorrer-nos os símbolos, as coincidências do 14 de março; o correto era que para amigos, familiares, eleitores de Marielle não houvesse hoje nada que a relacionasse pessoalmente à data, a não ser a admiração comum pelas figuras célebres relembradas calendariamente. Assim não foi; porém não por fatalidade ou infelicidade de saúde, e sim por atrocidade – ante a qual não nos calaremos absolutamente NUNCA, não antes que cada lacuna seja preenchida, cada punição aplicada. Não antes que inexistam pontas soltas e o ciclo se conclua e o cerco se feche.

Marielle: todos e todas nós somos porque você foi – e é – presente.

Agora e sempre.

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