quinta-feira, 18 de março de 2021

Rapaz com cachecol vermelho


Protagonista masculino não costuma ser minha preferência, a não ser que o fazedor da obra me apaixone forçosamente pelo cujo, num golpe baixíssimo; se essa crushice não se der, o provável é que a tal voz ficcional não me importe muito nem significativamente me comova. Meu filme mais do coração, O fabuloso destino de Amélie Poulain, tem uma mulher como eixo; meu livro mais elegível para o topo dos favoritos, Jane Eyre – obra de mulher, por-sinalmente –, idem; e, a despeito de tooooda a adolescência e a primeirinha fase da idade adulta me haverem feito uma groupie literária IRREVERSÍVEL do século XIX, período no qual as manas só conseguiam publicar em modo de exceção e não de regra, são precisamente duas dessas raras autoras oitocentistas que significam, para mim, o auge da literatura na época: pela tessitura assombrosa dos personagens e do enredo, George Eliot; pela visão sensível e oxigenante de mundo, George Sand. (Machado e meus poetinhas românticos não disputam pódio, diga-se; estes últimos por serem amor profundo, aquele lá por ser Machado e acabou-se.) Em Eliot e Sand, mesmo os personagens masculinos me parecem mais úmidos, camadosos e interessantes, ou então é a tinta de autora que os embrulha num cenário muito superior a eles próprios, a suas próprias ambições e sufocações; é uma experiência radicalmente diferente, por exemplo, ler um Daniel Deronda de Eliot, em que o moçoilo-título se mostra no máximo co-protagonista (ao lado de Gwendolen Harleth, uma das mais instigantes psiquês de mulher já criadas), e ler um O vermelho e o negro de Stendhal – construção psicológica soberba, impressionante, colossal, porém inegavelmente centradíssima num umbigo machinho. Não se trata de crítica, quem sou eu!, apenas de constatação e assumido pretexto para dizer: só genialidade não basta, necessito de genialidade com menos testosterona.

Mesmo nas artes plásticas eu tendo a me inclinar para representações femininas (ou relacionadas ao que é tradicionalmente atribuído ao universo feminino) e ser um tanto quanto impermeável às demais. Muito no entanto, às vezes alguma arte de voz e/ou representação xis-ípsila também me fascina pela umidade, como se deu quase literalmente com o quadro reproduzido acima, do expressionista belga Léon Spilliaert: Young man with red scarf (Rapaz com cachecol vermelho, em tradução livre). Que tem ele de irresistível? não sei certinho; talvez a aparente simplicidade tão chamante, tão simpática; talvez as proporções tão instigantes, que submetem o pequeno humano sem identidade e sem rosto à superioridade brava ou calma – creio que brava: tanto vento no cachecol vermelho! tanta espuma! – da enormidão azul; talvez o contraste delicioso da pecinha vermelha, único quentume da cena, com todo o resto da composição fria e sóbria. E a atitude do rapaz magro, alto, sem rosto: que é que mora naquela contemplação indiferente à fome ressacosa do mar, ao desconforto da roupa molhada, ao risco mais do que considerável de perda do cachecol? Por que a mão no bolso – resignada? comovida? – que não se anima a segurar o pouco de calor que lhe escapa?

Não dou nome ao moço incógnito, já que o artista só o traiu vagamente na idade e olhe lá; nem traços pôs na possível desolação de seus olhos presos no azul. Será luto a pose de sozinhez outonal? Ali há tristeza sem dúvida, e no entanto eu não apostaria em luto: pelos idos de 1908, data da obra e presumivelmente da cena, me soa gauche que alguém enfeitasse o nojo com um vermelhão assim, exceto se num ato de rebeldia. Pode haver rebeldia, mas penso que não de morte – rebeldia de amor arranhado, carecido de uma praia com vento, muito vento e muito mar para ter área de espalhar-se, de o sentimento correr e gritar o que o vulto magro não corre e não grita. Veeeento que arranque, simbólico, o cachecol tão exclusivamente vivo no moço, tão isoladamente intenso numa biografia talvez tão bege ou árida ou gélida: como se nem fosse de propósito que o jovem à beira-mar estivesse pedindo a retirada de sua última (irrealizada) característica pulsante. Enterro de ilusões em pura metonímia.

Veem? sem uma permeabilidade muito arenosa, não consigo imaginar personagens masculinos a meu gosto; preciso deles menos auto-heroicos, menos possantes, menos ambiciosos, firmes em essência mas móveis na dor, de todo atravessáveis pela dor, maleáveis, poli-habitados e suscetíveis. Se sofrem, quero que a narrativa me disseque mui detalhadamente por quê, que não me mostre nem loucos nem semideuses, nem dândis nem celerados, nem articuladores nem sonhadores de glória; homens, apenas – frágeis, apaixonados, expostos nas menores entranhas sentimentais. Como costumam ser expostas as mulheres.

Como costumam ser pintadas as figuras que estão sempre à beira do imenso, sempre às margens das próprias chances interiores de não perder o pobre cachecol.

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