sábado, 27 de março de 2021

Um tempo bom chegando


"Há um tempo bom chegando, rapazes!/ Um tempo bom chegando." Como não ser beliscado por uma esperançazinha ao ler os versos felizes do poeta e jornalista reino-unidense Charles Mackay (207 anos hoje! Yay, Mackay!), musicados com grande sucesso por Henry Russell? There's a good time coming foi uma canção popularíssima no século XIX – e é realmente adorável, procurem –, mas vocês hão de concordar que nunca precisamos tanto dela como agora, ao menos no Brasil: "There's a good time coming, boys!/ A good time coming./ We may not live to see the day,/ But earth shall glisten in the ray/ Of the good time coming./ Cannonballs may aid the truth,/ But thought's a weapon stronger;/ We'll win our battles by its aid,/ Wait a little longer" ("Há um tempo bom chegando, rapazes!/ Um tempo bom chegando./ Podemos não viver para vê-lo vir,/ Mas a terra há de no raio luzir/ Desse tempo bom chegando./ Balas de canhão ajudam a verdade,/ Mas o pensamento é arma mais capaz;/ Venceremos nossas batalhas com seu auxílio,/ Esperem um pouco mais" – é o que teríamos numa tentativa canhestríssima de tradução da primeira estrofe, respeitando um fiapo do esquema de rimas; perdão por isso).

Conforme alguém sabiamente já recomendou, deixo o pessimismo para tempos melhores e vou inteirinha na vibe de Mackay: há um tempo bom chegando, moças, rapazes, irmãzitas e zitos cá da terra. Há um tempo chegante em que a ciência acabará de se impor à força de seleção natural; o que não conseguem os avisos devolvidos com deboche, conseguirão os fatos cientificamente previstos. Não que mortes sejam desejáveis; nunca são, nunca; outros efeitos do descaso, entretanto, também gritarão loud and clear o bastante para que uns mais revestidos de poder decretem em breve: chega. Basta, viremos a página – e viraremos a página. Se o que vive de desesperançoso e exausto em nós não crê que o sofrimento do povo venha a abalar os grandes (tem razão: não abalará), pois que nossa noção de praticidade nos anime, que ao menos nossa objetividade sem ilusões nos permita lembrar que o odioso senhor mercado não é sujeito de tolerar o desaforo de perder consumidores em massa, nem parceiros internacionais a rodo. Um monstrão não convive longamente com uma sua excrescência sem que acabe por defenestrá-la.

Há um tempo bom chegando, amados – um tempo em que aberrações de preconceito serão tratadas única, exclusivamente como as aberrações que são. Não é verdade que (para nos soprar um cadinho de fé no andamento da história) cenas bizarras de machismo, racismo, homofobia que habitavam a TV de décadas atrás já agora se intimidam e se escondem, ou, quando ousam arriscar uma aparição, levam imediatamente a devida marretada? Séries, propagandas, filmes e novelas mostram uma evolução possante de ano para ano; o zeitgeist assim exige, o movimento é ir-re-ver-sí-vel e seu resultado (esperamos), definitivo. Nunca mais voltaremos ao que éramos, não recuaremos um passinho sequer, ainda que fascistas se estrebuchem e extravasem de ódio como aliás sempre fizeram – o que parece um recrudescimento de fascismos é o último guincho da besta fadada à destruição. Pode não ser bem agora, bem amanhã, mas há de ser casablancamente logo, e há de ser para o resto da vida.

Há um tempo bom chegando, my people! um tempo em que verdades se tornarão tão mais sofregamente queridas e buscadas quanto mais têm sido massacradas pelo absurdo. O absurdo, de não se sustentar, cansa; gera antipatia, ressaca, entojo, desconforto, tanto assim que deriva e derivará rapidinho em seu contrário: o aconchego da sensatez que restabelece, enfim, caminho sólido no qual se pise sem se pisar no arbitrário do ar. Humanos destinados à inteligência (a maioria, acredito, ou como teríamos chegado até aqui?) precisam da verdade, arfam pela verdade, não descansarão senão na verdade; angustiados ao cúmulo com toda a gama das mentiradas toscas até o mais deep dos fakes, tenderão a se agarrar com maior e comoventíssimo afinco à realidade limpa, direta, simples, livre de gritos e delírios e pavores – espécie de locus amoenus moral e contemporâneo. Nosso coração, coisa demais de sensível, há de progressivamente se aproximar de tudo quanto o faz viver sem medo, sem histeria, sem o ódio que só equivale a desgaste e desassossego, sem outra resposta final que não a objetividade do amor, essa certeza mansa que deixa todas as alternativas para trás.

Esperem um pouco mais.

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