quarta-feira, 24 de março de 2021

Elogio da língua imperfeita


"As línguas são imperfeitas/ pra que os poemas existam" – escreveu Adélia Prado, consolando-nos de toda insuficiência. Como se dissesse (e aposto que pensou) que as flores são limitadas e imperfeitas, incapazes de suficiente polinização e de voo, pra que as borboletas, abelhas, beija-flores existam feito um seu anexo, um seu desdobramento. Como se afirmasse que os climas são instáveis e imperfeitos para que existam solenemente os arco-íris. Como se celebrasse o serem as nuvens desiguais e imperfeitas para que existam boquiabertamente os pintores.

As línguas são sim imperfeitas, imbastantes para todos os cantos, inacessantes pelas próprias forças gramaticais de todas as frestas psicológicas – daí, por exemplo, a metáfora, possibilitadora de que quase tudo seja dito da maneira que é sem o ser. Cada metáfora (barro de poesia) abraça um verbete dum infinitilhão de dicionários particulares e amplia de modo caleidoscópico o idioma de origem, tão pouco para descrever as existências de dentro: o olho da pessoa amada não é olho, é uma central de pinceladas impressionistas, é uma poça de mel sob um dia de chuva, é uma tulipa negra de Alexandre Dumas plantada sobre a neve, é uma revoada de miosótis, uma antemanhã, um equinócio, um dilúculo, um plenilúnio; a alegria não é alegria, é a alma entregue ao cafuné da memória, é a aurora boreal rodando em pas de deux com o estômago, é o réveillon de Copacabana estourando no peito; casa não é casa, é um endereço de pelúcia, é um berço de muitas paredes, é uma corola de pétalas concretas e cimentas, uma festa em que se anda descalço. Por causa da inexatidão emocional a que estão sujeitos quaisquer milhões de trechos em vernáculo, fica possível e desejável a poesia, essa tão bem-aventurada necessidade, tão bem-vinda urgência – essa reprodução linguística da paixão biológica de que estaríamos dispensados, se corpos e idiomas se fechassem numa total eficiência interna.

Em havendo palavras dicionárias suficientes para o que somos, não teríamos o teadorar de Manuel Bandeira, a despalavra de Manoel de Barros, as atravessuras (quantas!) de Paulo Leminski, as ultrafatalidades de Augusto dos Anjos, o coraçãomente de Guimarães Rosa. Não teríamos tampouquinho o gosto de fazer massinha e lego das palavras, nós-mesmamente, já que línguas redondas de perfeição não se querem brincáveis: quem brinca com porcelana dura, caríssima, delicadíssima, vestidíssima de renda? Uma língua que fosse cirúrgica e espartana, plena e direta, repleta de todos os objetos feitos sem restos de insumos para produzir novos, sem falhas, sem brechas, sem vazamentos – isso é tudo que eu particularmente não queria da vida, eu e todos os falantes e escreventes que fomos aparelhados para gostar de passarinhos voando em completamente tudo. A arte, desvio de todas as linguagens, é isto: o desvio, o subjuntivo, o neologismo, a hipótese, a ressintaxe, a recolorice, a refeitura, a recriação. A recriação – que é justamente a margem de criação humana, visto sermos inaptos de nascença para tirar qualquer coisa de qualquer nada.

Que me perdoem línguas nenhumas (já que, humanas, não as há perfeitas), mas qualquer nonada de poesia é fundamental.

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