sexta-feira, 5 de março de 2021

Fagulhas

No (aparentemente) único episódio do programa Roteiro de viagem com Kevin Frazier que passa no Brasil, o apresentador segue a dica de um famosinho de Nova Orleans e vai conferir o crepe espetacular duma lanchonete da cidade. Mostra o lugar descolado e fofo, mostra a boniteza do prato e, entre uma garfada e outra de inebriamento, solta a frase talhadinha ela mesma para a paixão: "A vida se resume a se apaixonar várias e várias vezes por dia".

Não precisamos falar sobre o Kevin, que realmente não conheço (a depender da programação bizarra dos canais por assinatura, é provável que eu continue sem conhecer, infelizmente); mas uma frase dessas, bicho. Ou nem tanto a frase – que não apresenta grande novidade na estrutura, convenho –, muito mais o contexto, a espontaneidade com que foi emitida, a filosofia inesperada que o prazer da garfada perfeita trouxe à tona. Uma declaração comovente, quem dera que viável: resumir a vida aos encantamentos que rebentam aqui e ali é ainda, lamentavelmente, ideia exagerada de doce, tese excludente de todos os sofrimentos que insistem em invadir a rotina, esses desagradáveis. Mas num mundo ideal, limpo da canalhice dos homens, seria sim viável e absoluta, seria a regra – porque é mesmo a vocação da vida, em última instância: apaixonar cada um de seus viventes, várias e várias vezes por dia, pelas leituras, canções, naturezas, receitas, pessoas, teorias, paisagens, descobertas que os circundam, que os abraçam em borbotões de possibilidades.

Tenho bem esses ímpetos de apaixonada eterna; exatamente ontem, caí de encantos por uma palavra francesa linda, linda – étincelle (centelha, fagulha) –, e anteontem pelo vídeo de uma garotinha oriental de cerca de dois, três anos que cantava num programa de TV da maneira mais fofa que é permitida no planeta. Me apego com ardor alarmante a personagens de séries e filmes (o mais recente Coringa, por exemplo; nesse caso, não por identificação – o que espero seja óbvio –, mas pela disposição irresistível de consolá-lo e protegê-lo). Me sinto mui ternissimamente unida a todos os autores de preferência, passando inclusive por repaixões, como no último livro de George Sand que li e em que a descobri comunista. Me alumbro recorrentemente com novos pratos dos congelados que peço, com países visitados em programas de viagem que acabam subindo para o topo da wish list, com fotos de flores até então ignoradas, com histórias de coincidências boquiabríveis, com perfis de gente porreta no Twitter e no Face, com recursos bonitinhos de aplicativos, com imagens de filhotes e bochechas estonteantes que trafegam pelas redes sociais. Me apaixono por memes, gírias, expressões, citações, causos, dicas, mágicas, quadros, esculturas, crônicas, poemas, artesanatos, produtos (que não compro: sou apaixonada, não doida. Nem rica); me apaixono por sebos, bibliotecas, casas de chá, cantinhos, jardinzinhos, bonequinhos, sabores, colares, lâmpadas, vestidos de noiva, veludosas vozes. Me apaixono 16 mil vezes por dia e não é fogo de palha, é arranque de motor, para corroborar o poeta francês René Daumal: "Um homem não pode viver sem lume, e não é possível fazer-se lume sem queimar alguma coisa".

Avante, amigues, lenha no mundo é que não falta; se deixarmos de arder (como mais ou menos diria o também francês F. Mauriac), muita gente nas imediações de nós morrerá de frio.

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