terça-feira, 23 de março de 2021

Amor, feito terra


Gosto imenso da noção de responsabilidade, atividade e busca que é reforçada pelo psicanalista alemão Erich Fromm (um hoje aniversariante, êêêê! completador de 121 aninhos potenciais) com relação ao amor – essa entidade tão terrivelmente reduzida, pelo mau senso comum, a uma Disney onde se demanda entretenimento uma vez pago o ingresso. Fromm não deixava de sublinhar a incongruência dum amor assim de palco, de ribalta, contratado nos moldes do freguês, e era criticamente cutucão dos egoísmos de afeto: "A maior parte das pessoas vê no problema do amor, em primeiro lugar, o problema de ser amado, e não o problema da própria capacidade de amar".

Pois não é? O que mais infla os Tínderes que andam continuamente à caça vem a ser, acredito, o desejo de atrair para si a atenção e o carinho de outrem – dificilmente o contrário; dificilmente (quero dizer) alguém entrará nos aplicativos-cupido com a deliberada vibe "vou achar alguém para ENTUPIR de felicidade até sair arco-íris pela orelha". Não que seja errado querer-se querido, naturalmente; é das necessidades mais básicas possíveis, rivalizável apenas com ar, água, alimento físico, e em cuja falta pode-se até não morrer de morte oficial, mas de morte moral bem que se morre. Alguém inteiramente desamado (de maneira ampla, não romântica) é em geral um falecido de corpo presente e circulante, doente brabo do peito, ignorante das nobrezas do amor na mesma medida em que foi sempre ignorado. Isso é claro e certo. No entanto, ouso crer que os inteiramente desamados não são a maioria, e que em tese a maioria teria condições básicas de reproduzir alguma versão de pleno amor que lhe foi apresentada. É a essa gente minimamente instruída nos meandros de amar que Erich Fromm se refere com sua delicada indignação: se é um pessoal que recebeu, pois que agora doe e se doe com um pouquinho mais de empenho, um pouquinho mais de capricho com a sagrada regra de passar adiante.

Amor, feito terra, não é coisa de ficar parada e latifúndia em torno de um só, não é vassalo de um suseranão que concentra todas as dedicações e favores; amor, feito dinheiro, não é coisa de ficar empilhada e encofrada na caixa-forte de um único e possessivo Patinhas, que queira se servir de todas as riquezas de atenção disponíveis no mercado. Amor não é projetado para o mimo exclusivo de um dos filhos, um dos amigos, um dos pais, um dos conjes; não é destinado ao criadouro de monstrinhos egoístas, incapazes de saciar-se mesmo com o cúmulo do foco alheio; não é arquitetado para piscininha de playboys emocionais, doidos pelo ócio afetivo (ócio afetivo esbarra em ser tudo, menos amor); não é o almofadador da vida de reizinhos carentes – é um dínamo, é um arado, é um que empurra os amados da cama ainda na madrugadinha para lavrar, adubar, cultivar, pegar gosto pela utilidade. Amor não necessariamente dá comida na boca ou leva café na cama, mas senta junto na cozinha, reparte a receita de família, ensina a fazer biscoito, a lidar em segurança com o fogo, a nutrir-se do que convém. Amor não é a tia Teteca do outro nem se oferece grudento, melento, entetecável, já que não dá em bonecos que brincam de casinha, dá em seres suficientemente maduros e autônomos. Amor se re-cu-sa a ser gambiarra, fralda, babá, muleta, encosto de cadeira; se nega a encarnar o McLanche Feliz que se monta de encomenda; não se rebaixa a existir, íntegro, para quem não o integralmente compreende: existe íntegro em si mesmo, limpo e acessível, sem transigir com aquilo em que não crê apenas para se tornar aceito e palatável.

O amor está no desdobrar-se, não no querer ibope ou fazer campanha. Sem slogan, sem promessa, sem bandinha de música, ele vai e ama e semeia, intransitivo; não prioriza garantir que as terras sejam suas. Prioriza garantir que as terras sejam férteis.

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