segunda-feira, 15 de março de 2021

Guerra no coração


"Não gosto de gente com guerra no coração", declarou uma daquelas crianças que compõem o material do Dicionário de humor infantil. É bem verdade que a frase, embora integre o livro assim batizado, nada tem de humorística, muito ao contrariomente: enternece dum jeito melancólico, e ganha dimensões ainda mais perturbadoras d'alma se a relemos um dia após as manifestações esdrúxulas, despirocadas, egoístas, insanas – pró-morte – que o Brasil testemunhou. Me parece que a TV demonstrou, no geral, o bom senso de não divulgá-las ao vivo, porém sabemos direitito o quão mais crucialmente a internet tem pesado no abastecimento (abestecimento seria mais pertinente) dessa galera furiosa; não deu outra, o estouro da boiada bombou nas redes bolsomidiáticas. Volta e meia os compartilhamentos furavam o cercadinho bovino e vinham parar em nossa timeline, trazidos pelo espanto e pela tristeza dos amigos diante da zombie walk celebradora de genocídios. E de genocidas.

Me digam se esses aglomeradores desmascarados não configuram o tipo de gente que a criança do livro marcaria com o selo: guerra no coração. Incapazes de se conformar mesmo com a sugestão de um mundo minimamente sensato, minimamente justo – no qual os cientistas são ouvidos, o lockdown é pronta e eficientemente providenciado, as pessoas recebem uma remuneração digna que lhes permite ficar em casa enquanto o vírus dos infernos não cede –, os tais seres cardiobélicos se alimentam, ao que tudo indica, da destruição própria e alheia. Em nome de quê? dizem eles que das liberdades individuais, mas não poderia ser maior a balela, tanto assim que salivam por uma ditadura bem fechadora de STFs, torturadora e verde-oliva. E convenhamos: que espécie de liberdade é essa em que, provavelmente, nem seus netos e bisnetos de colo acham lógica, já que se estremece toda de horror ante a perspectiva de um paninho no rosto e não receia a necessidade de ficar sozinha e entubada numa UTI, sem capacidade sequer de aspirar o próprio oxigênio? Que liberdade é essa que prefere estar inconsciente e ser alimentada por soro a precisar pedir comida pelo iFood porque o bistrô fechou mais cedo? Liberdade legítima nunca deixou de raciocinar em prol de si mesma; só o ódio puro, babento e espumento não o faz, deseja apenas garantir que todos se desgracem para sua diversão particular (e suicida).

O cardiobelicismo é isto, a pulsão tão feroz de morte que não quer saber se o pulsador vai cair junto no precipício que se abre, quer é que todo mundo caia, num frenesi histérico. Em guerras não se costuma chegar frequentemente a um estado de violência pornográfica, que só utiliza alguma remota justificativa "racional" para fazer a lavagem de seus impulsos, mas que é, de verdade verdadeira, um transe de aniquilação? Pois; sem dúvida não é à toa que o mesmo povo passeateiro contra máscaras e lockdowns tem uma simpatia confessa por armas; é o fetiche metralhador que bate no peito, a loucura dos frustrados, dos inseguros, dos carentes dalgum amor à vida mais sólido, duma autoestima mais firme, duma razão de existir mais íntima. Pode-se apostar sem erro: não há cardiobélico nem manifestante pró-morte que não abrigue num canto d'alma, normalmente trancada em quartinhos aonde não chegam os olhares das visitas, uma infelicidade densa e profunda, de gigantesca irresolução. Alguma mentira pessoal esses corações adoentados se contam – proclamar máscaras e distanciamentos ineficazes não é certamente a única. Alguma dor anda lá sequestrada, sufocada, infeccionada, muitas vezes há décadas, e muitas vezes só esperançosa de ter um tanto de alívio do próprio pus sob uma descarga pública de ódio supurante: muito mais fácil que uma cura individual é sempre uma catarse coletiva.

Pena que quaisquer honrarias de guerra pendem do peito exclusivamente por fora. Enquanto não se chama o adversário de dentro na chincha, todo ato e todo passo equivalem a uma deserção.

Nenhum comentário: