quarta-feira, 17 de março de 2021

Ou isto ou aquilo


"Damos voltas e voltas", resumiu tranquilamente José Saramago, "mas, na realidade, só há duas coisas: ou escolhes a vida ou afastas-te dela". Pronto; eis aí a coisa-mor reduzida à sua expressão mais simples.

OU a gente usa muito ajustada e direitinhamente a máscara em todas as saídas e em todos os exteriores contatos, OU tasca um beijo bem consciente e sossegado na morte.

OU a gente defende que vacinas são a única resposta já produzida em laboratório contra o vírus do momento, OU continua abraçado à farsa assassina de vender, como graal, remédio de malária e piolho.

Ou aceitamos como certo, sagrado, justo que todos recebam condições minimamente similares na base – ou embarcamos na loroteira cri-mi-no-sa de exigir, meritocraticamente, que os nascidos entre caos sociais corram na mesma raia dos filhos do berço esplêndido.

Ou gritamos por auxílio que garanta um piso de segurança e dignidade aos desamparados da pandemia – ou nos postamos ao lado da fome, da aglomeração desesperada em ruas e transportes, dos picos de contágio.

Ou apoiamos trabalhadores uberizados e ifoodizados em seu inegável direito a maiores estabilidades e melhores condições – ou levantamos a bandeira da precarização escravizante e desoladora.

Ou somos defensores de pessoas, ou somos defensores de empresas.

Ou somos pobres e empatizamos com pobres, ou somos pobres e nos rebaixamos com simpatia aos interesses dos ricos (convenhamos: ninguém que porventura me leia é rico, nenhum rico se incluirá neste nós. E haveria a prateleira "rico empatizando com pobre", anyway? Talvez Friedrich Engels – olhe lá. Não, não, nem esses aí que vocês estão pensando, já que não falo de dar alguns benefícios, e sim de equalizar oportunidades).

Ou somos afrontosamente antirracistas, ou somos NO MÍNIMO coniventes com o massacre (em múltiplas esferas) da população não branca.

Ou nos declaramos religiosos – ou endossamos discursos e posturas homofóbicas, atitudes machistas, políticas excludentes, emprego de violência policial, naturalização do uso de armas.

Ou exercemos de fato a caridade – ou apenas encobrimos de esmolas fáceis nossa indiferença, empenhada em ter "devedores de estimação" e não irmãos de sociedade igualitária.

Ou seguimos Jesus, Javé, Alá, Oxalá, Buda, Shiva, Kardec – ou seguimos Bolsonaro.

That maniqueísta? Sim, that maniqueísta; há momentos, temas, setores nos quais simplesmente não cabem tons de cinza, ou se existem são fortissimamente relacionados a um lado ou a outro, sem clima ou possibilidade da mais leve parecença, da menor interseção. Conhecem por acaso um mais ou menos racista, um quase nazista, um levemente homofóbico? Pontos há em que a posição humanisticamente viável não está mais aberta a qualquer debate, em que ciências e filosofias já pacificaram todas as possíveis discussões, em que portanto não é tolerável nem a mais microscópica portinha franqueada à intolerância – feito um vírus (exemplo não nos falta) ao qual não pode ser franqueada nem a mínima brecha de contaminação. Sim, amores, muitonas vezes precisamos ser (e somos) inexoravelmente isto ou aquilo: ou providenciamos que o coletivo se espalhe em frutos pelo chão, ou mandamos o coletivo pelos ares.

Em termos de amar não há quem possa estar ao mesmo tempo em dois lugares.

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