sábado, 6 de março de 2021

Questão de honra


Sei que a frase parece fortissimamente vintage, mas considerem que foi dita por um sujeito hoje completador de 538 aninhos (o historiador e estadista italiano Francesco Guicciardini, migo de Maquiavel): "Ambiciona honra, não honras". Chamo-a vintage porque honra é termo já muito caidinho em desuso, o que nem é de todo ruim, levando em conta o péssimo emprego recente da palavra – normalmente relacionada ao conceito machista de não admitir ser traído pela conje, ou, se for, não admitir que a conje sobreviva a isso. Inclusive a defesa desse tipo estranhíssimo de honra era, até quase ontem, abraçada como atenuante em tribunal, em caso de uxoricídio, porque aparentemente (na opinião masculina) ser vítima de deslealdade é a coisa mais vergonhosa de toda a existência, mas assassinar alguém não desonra ninguém não. E depois me perguntam por que eu digo que, pela evolução natural, o mundo está destinado a pertencer às mulheres.

Não satisfeitos com os crimes cometidos por questões de ordem cornística, até meados do século XIX os moçoilos se batiam em duelo fatal por qualquer dá cá aquela palha, para usar uma expressão com o mesmo nível de mofo. Bastava um ter acordado de ovo virado por causa do desprezo da bela e chamar publicamente o outro de cara de mamão, pronto: era uma baixaria polidíssima de tacar luva na cara, mandar os padrinhos de um e outro combinarem local, hora e arma, amanhecer no dia seguinte metendo uma bala ou uma espadada no peito do desafeto, tudo deveras cavalheiresco e ridículo. Em boa parte dos lugares essa palhaçada era proibida e a punição, severa; a carnificina, porém, acontecia anyway, porque a honra, a honra! que seria dela se não tirassem satisfação após alguém os ter declarado feios, chatos e bobos em praça pública? Uma hecatombe. Toda a treta, enfim, termometrada pela percepção alheia, pela opinião geral, por ações vindas de fora – prova de que esses moços, pobres moços, nunca tiveram um Papo de segunda na vida, com um Francisco Bosco alertando repetidamente que não se pode ser desonrado por algo que lhe fizeram, apenas por algo que VOCÊ fez, bonitón.

Embora estruturalmente vintage e cronologicamente século-dezessêisima, a frase de Guicciardini comporta até uma leitura contemporânea, uma vez que põe em oposição (como deve ser) as honras puramente externas e a honra toda interior, legítima, não obrigatoriamente atrelada a nenhum reconhecimento oficial. É bem suficiente ver quantos torturadores, milicianos, genocidas, farsantes, assassinos já foram medalhados com fartura no correr da História, exaltados em nomes de ruas, em museus, em estátuas equestres; quantos receberam e recebem "doutor", "coronel", Meritíssimos e Excelências; quantos têm a mão beijada e as nojeiras esquecidas em nome de seu duplo talento de poder e dinheiro – ah, sim: e da falta total de escrúpulos que lhes permitiu consegui-los. OK, estão chafurdados num poço de prestígio humano; e daí? Seus netos (filhos de um mundo futuro que está fadado a civilizar o pensamento) poderão dizer com ternura e orgulho que o vovô jamais provocou dor de qualquer tipo, ou fechou os olhos a que ela fosse provocada? Seus pequenos penduricalhos de metal, suas fitinhas grudadas no peito, vão ser motivo de saudade para conhecidos ou desconhecidos? Sua ausência vai ser de fato lamentada, após a presença ter sido tão opressiva? Sua morte há de ser mais fonte de vácuo do que de alívio? Entre os mesmos que os bajularam e condecoraram, haveria realmente quem desse por eles a vida, quem lhes doasse um rim, quem os acompanhasse a cada dia de uma velhice solitária e doente, apenas por gratidão e amor? Que bagaça de honra é essa que cessa quando cessa a influência, a dependência, a conveniência, o medo, o interesse, a dívida, e não deixa nenhum coração sinceramente choroso à beira do túmulo?

Honra não nos visita, não nos é concedida, não vem de fora – e da mesma forma não pode ser retirada com calúnias ou banimentos; impõe-se no exílio, na masmorra, na fogueira, atrás das grades, sobre a cruz, sobre o cadafalso, sob a letra escarlate. É código que não cede nem à maciez da propina, nem às cócegas da fama, nem à pressão da família, nem à chantagem do arbítrio. É pulsão que desnecessita de aprovações ou recompensas por se firmar toda no eixo da tranquilidade de si. Em última análise, é nada mais que uma intransigente do bem, perfeitamente indiferente se vai ou não ser chamada de tola no fazer jogo limpo, no respeitar o adversário, no manter a lealdade – contanto que esteja ciente de que não produz mal algum ao guardar as convicções, e de que prejudica no máximo a si mesma (do ponto de vista "utilitário") com sua heroica teimosia.

Honra não mata, frequentemente morre, em geral detesta câmeras e tem preferência por atuar quando ninguém está olhando. Por supuesto não é à toa que sua concepção essencial anda tão alarmantemente fora de moda.

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