domingo, 28 de março de 2021

Dez em evolução


Muitíssimo poderoso o alerta da escritora norte-americana Toni Morrison, Nobel de 1993: "Eu digo aos meus alunos: 'Quando vocês conseguirem esses empregos para os quais foram tão brilhantemente treinados, lembrem-se de que seu verdadeiro trabalho é que, sendo livres, vocês precisam libertar outra pessoa. Se vocês têm algum poder, então seu trabalho é empoderar outra pessoa. Isso não é só uma brincadeira de pegar docinhos'". Infelizmente nunca li nenhuma obra de Morrison, mas já amo pela escrita de mundo; seu pensamento vai muitão ao encontro das melhores filosofias de responsabilidade e partilha, e muitão de encontro às piores inclinações de individualismo abjeto. Creio ser esta a exatamente-única estrada para que a humanidade se viabilize: viabilizar o bom trânsito de todos com todos os possíveis recursos; não há engarrafamentos quando toda gente flui, dentro de seu próprio espaço, na direção dos interesses comuns, e não há cabimento em caotizar a mesma via que se percorre trancando-a para os demais veículos.

A fala de Toni Morrison me remete diretinhamente a outra interação de uma autora com seus alunos: o caso de um estudante que perguntou à antropóloga Margaret Mead qual ela considerava ser nosso primeiro sinal de civilização. "Um fêmur de 15 mil anos encontrado numa escavação arqueológica", cravou a professora. "O fêmur estava partido, mas tinha cicatrizado. É um dos maiores ossos do corpo humano [...] e demora seis semanas para curar. Alguém tinha cuidado daquela pessoa; abrigou-a e alimentou-a. Protegeu-a, em vez de abandoná-la à própria sorte". AMO, simplesmente AMO essa história (recordada pelo jornalista Rui Gustavo no texto aqui linkadito) e essa leitura de sensibilidade tão fulminante. O que nos distingue como espécie não mais asselvajada, de elementos não mais entregues ao vale-tudo do live and let die predatório, doido, é a disposição de cuidar, e cuidar independentemente de se estar zelando por um indivíduo que irá levar à posteridade nossos genes – porque dos filhotes boa parte dos outros animais também cuida. Não; é o zelo incondicional que se põe muito acima do sangue, muito além das contingências genéticas; é o zelo não programado, não instintivo, e sim escolhido conscientemente: a proteção a alguém do grupo que não é meu, nem de certa forma sou eu, mas que vale igual a mim. Principiamos a evoluir SÉRIO quando decidimos que não era porque o Clêiton tinha quebrado a perna que estava fadado a ser almoço de tigre-dente-de-sabre ou tapete de mamute lanoso; onde ele ficasse ficariam todos, ou ao menos alguéns, até que a mobilidade estivesse restabelecida. Clêiton era valioso para o grupo pelo simples fato de pertencer ao grupo.

"Ah, mas claro, quem não ia querer Cleitinho Churrasco de Mastodonte na sua equipe? o caçador mais badass de todo o Pleistoceno?" Certo, certo; porém, ainda que a incondicionalidade do serviço prestado pelos demais não fosse assim tããão incondicional, já estaria muitos passos à frente do feedback dado pelo desespero mais primário (se o predador está na área, a gente larga esse infeliz como boi de piranha e se escafede) e pelo impulso mais biológico (o mundo não pode perder a chance de receber meu material genético i-ni-gua-lá-vel, deixe-me preservá-lo). Provar civilidade e evolução não significa necessariamente provar iluminação espiritual, embora o trecho inicial da estrada seja idêntico; a habilidade evolutiva de proteger o outro não estava nem está isenta de interesses pessoais. Ou mais papo-retamente: preservar a vida e o bem-estar do coleguinha não é apenas questão de bondade, é questão de esperteza. Burrice é não curar o fêmur de todo o riquíssimo capital humano que nos cerca; rematadíssima burrice é desperdiçar talentos melhoradores da rotina em nome de ódios, ciúmes, egoísmos, individualismos estúpidos. Qual a lógica em deixar para trás ou jogar para baixo alguém que aumentará as vendas, fará melhores comunicações, inventará soluções, fermentará criatividades, descobrirá tratamentos, pesquisará alternativas, reflorestará ambientes? "Ah, mas é que não há lugar para todos." ÓBVIO que há lugar para todos; não estamos aqui todos? Se estamos aqui todos, somos todos únicos e fundamentais em nosso próprio nicho de atuação; somente a competitividade cretina estimulada por um sistema obtuso poderia se dedicar a forjar o contrário, em prol da concentração da caça nas mãos de pouquíssimos. Pouquíssimos estes que vampirizam o trabalho dos habilidosos enquanto os desunem com semeadas discórdias.

Caminhantes dum mesmo caminho, cultivadores do mesmo planeta: uni-vos, apoiai-vos, empoderai-vos, curai-vos, libertai-vos; que nada minta em nós a nossa natureza de coaprendedores e cooperadores – conjunto. E que, assim que passar a pandemia, possamos celebrar nossas vitórias comuns com um churrasco na casa do Clêiton.

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