domingo, 7 de março de 2021

Touro indomável


Disse muito interessantemente o historiador inglês Arthur Helps (adoro esse nome, excelente para uma empresa de consultoria: "Got a problem? Arthur helps!"), cujos 146 anos de falecimento são lembrados hoje, que "o homem invejoso deseja algum bem que outro possui; o ciumento muitas vezes se contentaria em ficar sem o bem para que esse outro não o possuísse". Eu nunca tinha pensado desse modo sobre a dobradinha infernal ciúme/inveja, e creio que Sir Helps foi totalmente agudo na distinção. A inveja – não que isso limpe de alguma forma sua barra – é cobiçadora em vários níveis, roubadora se houver ocasião, porém mais focada no próprio lucro do que necessariamente no prejuízo alheio, o qual não se apresenta a ela como um ganho direto; já o ciúme, ah! este sim é a víbora das víboras emocionais, porque não se satisfaz na posse, saliva sim pelo aniquilamento de toda criatura tomada como adversária. Se abandonados em situação de água-morro-abaixo, sua sanha e seu delírio só vão a galope na intensidade e chegam facilmente ao ponto de atirar o objeto de desejo na fogueira, desde que o inimigo (às vezes imaginário) seja atirado à fogueira pela mesma isca.

"Ah, mas um pouquinho de ciúme faz bem pro..." SLAPT! que nem naquele meme do Batman sentando a mão no Robin. Ciúme não faz bem para absolutamente nada, em quantidade nenhuma. É bicho ruim, peçonhento, doença do ego que só em raros casos entra em remissão; seu natural é escalar quickly e virar uma queimada inapagável no cotidiano das vítimas. Não me acreditam? confiram o número acachapante de feminicídios que diariamente nos esbofeteiam, todos ou quase todos fundados naquela velha e hedionda máxima do "não vai ser minha, não vai ser de mais ninguém" – o núcleo duro, a polpa congelada do ciúme. É isso, é essa desgraça: um crack psicológico que NÃO TEM dose segura; por meio dele se manifestam todos os recalques, todas as frustrações, todas as feridas narcísicas ainda e para sempre abertas, todas as infantilidades intratáveis e intratadas, todos os preconceitos de gênero longamente absorvidos, todos os vácuos de uma psiquê imatura e infértil para o amor comme il faut. Que estranho bem poderia fazer, num relacionamento que se pretende saudável, o sentimento de insuficiência vingativa (porque é isso o ciúme, uma insuficiência pessoal que se projeta no outro e se põe a arrancar dele o que não se tem), o esgarçamento cada vez maior dum coração que nunca soube ser inteiro e que acredita precisar da humilhação, da opressão, do rebaixamento e, em última instância, do sangue alheio como cola?

Ciúme não sabe jamais ser pouquinho. Vejam: seu eixo, sua fundação é precisamente o minar lento ou ligeiro da felicidade do outro, a felicidade que o ameaça e afronta; vai daí que o monstro está, por definição, impedido de não se cravar na jugular mal cria o primeiro dente. Do resmungo inicial contra qualquer amigo homem até as 58 facadas em pleno meio-dia, passando pelo aperto no braço, a ordem de trocar a saia curta, o compartilhamento de senhas nas redes, a invasão dos perfis, o stalkeamento, o isolamento crescente do ser parasitado, o tapa "porque você me deixa muito nervoso", a coisa evolui assim-ó, num estalar de dedos insuspeito apenas pela vítima entorpecida. O ciúme não é amor, não tem UMA GOTA sequer de amor, é inclusive o seu perfeito oposto: um ódio destrutivo, sanguessugo, faminto do outro corpo mas de uma maneira vampírica, daquela maneira possessiva que uma alma exilada de luz quer furtar para si (e aniquilar pessoalmente) o que é da luz. O ciumento é um ladrão infeliz de sossegos, já que incapaz de fabricar o próprio.

Por nenhum motivo sob o céu e sobre a terra se romantize o desconjuntamento psicológico de quem deseja a nota fiscal de outro ser vivente; o que parece intensidade é vício, desespero, antissociabilidade, autoestima rastejante e o impulso predador de esvaziar mais uma existência e guardar mais uma memória empalhada na coleção.

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