sexta-feira, 12 de março de 2021

Ter duende

Acho absolutamente lindo o caminho das palavras, sou amorosa eterna das vidas várias que assumem. Veja-se o termo duende, por exemplo; acabo de descobrir que, em espanhol, duende pode significar – além da criatura óbvia – "o misterioso poder que uma obra de arte tem para tocar as pessoas profundamente". Some-se a isso a interessância da etimologia: segundo escarafunchei, a palavra procede de duen de casa, "dono da casa", já que "o caráter intrusivo [dos pequenos humanoides fictícios] 'apreende' as casas e as encanta". Não é perfeito? da noção de que aquele homenzinho dos contos de fadas tanto se mete em assuntos alheios que acaba se apossando das residências, o sentido se expandiu (me deixem crer que foi esse o raciocínio) para o de domínio exercido por algo tão, TÃO fantástico, TÃO maravilhoso que nos enfeitiça para sempre a ideia e faz seu solene assentamento em nós.

Para você que obras têm duende? Para mim as de Escher são a epítome do tiro e queda, não consigo nem por nada despregar o olho. Também não posso me despedir da doce, implorante, enamorada, melancólica Moça com brinco de pérola de Vermeer, que nos grita e nos beija com sua expressão úmida. Também não posso ignorar a agonia do Autorretrato arregalado, desesperado, descabelado de Courbet (te entendo, Gustave, eu vivo no Brasil). E o olhar indecifrável da mãezinha debruçada sobre O berço, de Morisot, que já mencionei aqui há umas tantas postagens? e o olhar algo cansado, algo irônico, algo desafiador pincelado por Sargent em sua Lady Agnew de Lochnaw? puro visgo, puro duende. Têm duende as espirais noite-estreladas de Van Gogh; as coloridices apaixonadas de Klimt; as suavidades floridas de Renoir; as pontes, as ninfeias, os crepúsculos, os jardins de Monet; os surrealismos malucões de Magritte; as bizarrices relógias e derretidas de Dalí. Têm duende os hiper-realismos INACREDITÁVEIS de Philipp Weber. Têm duende os grafites FENOMENAIS de Rafa Mon.

Nas esculturas, então! – pululantes, oferecidas, acessíveis ao toque, libertas das duas dimensões limitantes – há duendice à farta. Vide o São João Batista jovenzinho, de olhar depositado no céu e mãozinhas postas enternecedoras, que foi dado à luz por Jean Dampt; o movimento congelado dos meninos que pulam no rio Singapura em Primeira geração, obra de Chong Fah Cheong; a galopada pujante (como é que inanimada??) dos cavalos selvagens em Mustangs, de Robert Glen; o portento e a hors-concoursice do Davi de Michelangelo; a perfeição es-tar-re-ce-do-ra da Virgem velada de Giovanni Strazza, cuja perícia tirou do mármore um véu INCRÍVEL de transparente; o amor fabulosamente retratado na dinâmica perpétua do casal Ali e Nino, enorme criação de Tamara Kvesitadze em que as figuras masculina e feminina se aproximam, se fundem, se separam para nosso mais completo alumbramento. Isso, claro, para pescar apenas meia dúzia de obras-primas cá e lá, ante a impossibilidade de homenagear todo o potencial duêndico de todos os séculos de todos os povos – é aliás lastimável que faltem horas, conhecimento e pupilas para abarcar a inteireza da genialidade humana, que sempre acreditarei infinitamente superior a suas burrices (pena que também infinitamente mais delicada e seletiva nas condições de plantio).

Capta-se nisto o duende arteiro das produções que nos possuem: passemos ou não passemos na lojinha do museu, afastamo-nos fisicamente da obra carregando ainda sua imagem, curvando-nos ainda ao peso ou à leveza de sua imagem, como paredes de exposição ambulantes. Viramos a casa da obra, que se prende a nós e pende dum nicho de nós com direito a plaquinha descritiva:

Óleo sobre alma, 24 x 7, gravada nos arredores de hoje. Talvez definitiva.

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