sábado, 13 de março de 2021

Vantagem retórica


Esse maravilhoso cidadão, o escritor italiano Alessandro Manzoni (leiam seu adorável romance Os noivos, clássico literário de sua terra), viveu entre os séculos XVIII e XIX, mas com a cabeça claramente já manifestada no século XXI ao afirmar que "as mentiras têm uma grande vantagem sobre os raciocínios: a de ser admitidas sem provas por uma multidão de leitores". Caramba, hein, Manzoni – Mãe Dináh não teria aguentado sua concorrência em nossos tempos. Porque não é cristalina e precisamente isso que temos sabido e presenciado? Nesta configuração doentia em que tem operado o planeta no geral, e o Brasil em sublinhadíssimo particular, anda tudo mais ou menos semelhante àquela lógica do País das Maravilhas que comemora desaniversários, ou seja, todos os dias nos quais alguém não nasceu: em vez de celebrarem a verdade onde ela é radiante e explícita, milhares de neurônios ensandecidos creem na exata lorota mais improvável, mais absurda, de modo que a própria ausência de divulgação da lorota nas mídias tradicionais é eleita como prova de que a lorota procede – tanto procede que a imprensa vendida, esquerdista não a divulga. EYE-ROLLING ao infinito e além.

Diria uma amiga de redes sociais, com inteira razão e em sinergia redondinha com o pensamento do autor italiano, que a maçada é que os embusteiros estão sempre em vantagem retórica: enquanto a nossa bolha de pessoas sensatas e coerentes mergulha em todos os procedimentos, todos os compromissos para manter o discurso (e a compreensão do discurso) num ambiente de dados, argumentos, coesão, interpretação, debate, análise – o outro lado não se prende ao mais ínfimo fio de escrúpulo, não é "detido" pela obrigação de fazer sentido ou desfazer equívocos, atua liberadaço, sem deveres de casa, em esquema de boate eterna e ninguém-é-de-ninguém. Como sustentar diálogo com o MÍNIMO de viabilidade, se o interlocutor está isento de ser intelectualmente honesto e pode manipular causas e consequências a seu gosto? Numa ponta ficamos nós, atônitos, preocupados em jogar pelas regras da oratória; na outra ficam eles, sacando livremente do bolso a arma que bem imaginam (Decepticons, Hattori Hanzos, Hadoukens) e nos arrastando pelas pernas para um Clube da Luta.

Não há, aceitemos, como "vencer" verbalmente a mentira e o mentiroso que já se encontram em dimensão tão divorciada da realidade, uma vez que se caminha numa estrada fronteiriça aos piores traços da loucura. Inexistem limites, basicamente. Se afirmamos tranquilos e científicos que o lockdown é fundamental para conter o vírus, pela claríssima razão de o vírus ficar limitado em saltar wheeee! de pessoa para pessoa, dizem que não, que é balela. Mas como balela, se a transmissão ocorre presencialmente? "Nãã, não tem nada disso, o povo precisa trabalhar." Concordo, precisa, porém uma coisa não anula a outra: não é possível convencer o vírus descontrolado a, por gentilezinha, deixar o povo trabalhar sem contaminá-lo no transporte público. "A economia não pode parar!" Não pode, mas o sr. corona realmente não se importa; por isso mesmo o lockdown deveria ter sido feito logo no início. Quanto mais demorarmos, pior para a economia. "A economia não pode paraaaar, sua esquerdalha!!" Pois é, pode não, só que vai parar em definitivo se não houver gente viva para sustentá-la. "Mortes são normais, é guerra, alguns serão sacrificados." Primeiro: não é guerra; guerra ocorre entre seres racionais AND não é transmissível por contato. Estamos lidando com uma força da natureza com a qual não podemos negociar, fazer acordo, meter bandeira branca, nos render. Segundo: você estaria disposto a se sacrificar ou a seus filhos para que "a economia não pare"? Urros, bufos, xingamentos, envios para Cuba e Venezuela, herege, comunista, cala a tua boca, vai estudar, o Bem vai vencer o Mal (Deus me livre do Bem dessas criaturas!), enfia a máscara no rabo. Fim glorioso da discussão.

Tem como? Tem nada. Galera acha, após décadas de fotos nitidíssimas da Nasa (hum, esqueci, é tudo parte da Grande Mentira – só não me perguntem por quê), que a Terra é uma bolachinha; vamos lá convencer esse hospício de que é, para sermos gentis, BASTANTE improvável que TODOS os países do mundo se neguem a pré-tratar sua população com ivermectinas, e se arrisquem alegremente a exterminá-la, APENAS para desdizer e chatear o presidente do Brasil? Sim, em Wonderland o planeta inteiro é um burrão cara-de-mamão, e nosso representante administrativo é a única sumidade médica – o que, concordo, faz sentido numa realidade paralela que festeja desaniversários. Cá no nosso cantinho do multiverso, chega inevitável o momento em que o mais saudável é passar uma chuva sob abrigo dalgum filme ou livro, enquanto não raia sobre todas as cabeças a verdade (nada) linda trazendo, em seu cestinho, aumentos de gasolina, enfartes por cloroquina, carências de vacina, acúmulos de caixão, altas de botijão, boletos gigantes, descontrole das variantes, ostracismo internacional, enfim o lockdown (que, por muito e muito tardar, pior há de ser).

É a única, a dolorosa retórica da verdade: acontecer.

Nenhum comentário: