sexta-feira, 19 de março de 2021

Alguma espécie de felicidade


Intrigou-me que Albert Schweitzer tenha dito: "O sucesso não é a chave para a felicidade. A felicidade é a chave para o sucesso". Daquelas citações pelas quais não se passa incólume, daquelas cuja leitura traz prontas minhocas e sinapses, concentradas na possível digestão mental. É então sine qua non estar de sorriso pendurado (junto com a máscara) nas orelhas, a fim de se chegar lá? É fundamental viver assim bem-aventurado antes que se possa existir bem-sucedido?

É fundamental, creio, ALGUMA espécie (íntima) de felicidade antes que se possa existir com uma boa espécie (social) de realização. Não suponho com isso que todos os figurões e remuneradões de cada área sejam ou estejam necessariamente felizes; porém, autorizando-me o raciocínio do professor Schweitzer, devo supor que em algum momento tenham estado ou sido. Se não há a mínima alegria, o menor spark em se rumar por determinada trilha, de onde brotam as pernas que andam andam andam indiana-jonicamente caminho adentro, sem a obrigação pessoal de ir do ponto A ao B e apenas pela febre de conhecer, catalogar, desbravar? Se não há um bocadinho qualquer de fascinação no olho ao acessar nossos avançadíssimos motores por dentro, religar veias e artérias, conter sangramentos, botar ar nos pulmões, observar os primeiros tuns dum coração principiado a rebater – de onde vem a teimosia insana que permite revolucionar a medicina? Se não há um tantito sequer de contenteza em compreender como o entendimento humano finalmente dá o clique e explode em viço, depois de exposto a múltiplos recursos, de onde surge a insistência de desenvolver mais e mais riqueza de práticas pedagógicas? Não brota, não vem, não surge de nenhuma razão em ganga bruta, constante e robótica, programada unicamente no modo deveres; pelo menos nada perto disso obtém uma porção de sucesso tão significativa. Por mais que um cabra legítima e respeitavelmente porreta em sua profissão seja racional até o extremo – e por mais que tenha tido, na trajetória de êxito, o auxílio de outros tantos fatores: sorte, nascimento, grana, timing, criação –, não haverá chegado a legítima e respeitavelmente porreta sem a faísca de alguma espécie de felicidade, alguma! no germe de seus trabalhos. E convenhamos: numa parte presumivelmente gordota deles.

Óbvio, isso não quer dizer (nem de longe) que alguém deva "trabalhar por amor", salvo se for irmã(o) de caridade, sacerdote ou estiver em similares funções missionárias – sublinhando-se que, mesmo nesses casos, o altruísmo sozinho não garante abrigo, remédio, alimento aos agentes da caridade; os santos mais abnegados não podem deixar de receber apoio material dos demais setores sociais apenas porque amam. Exceção feita (e com ressalvas) a esses operários da dedicação espiritual, o que temos é gente que só "trabalha por amor" nos sonhos desejosos de seus contratantes ávidos por lucro, doidinhos para plantar no funcionariado a culpa de não estar vestindo a camisa da empresa. Vestir a camisa da empresa porcaria nenhuma: À EMPRESA é que cabe vestir a camisa dos funcionários para que trabalhem – não POR amor, que é nesse caso manipulação e canalhice, mas – talvez COM amor, ou com aquele estímulo de gente nutrida, descansada, recompensada, grata ao ambiente estável e salubre em que se encontra. Patrãozinho quer melhorar a produtividade? pois dê aos empregados todos os elementos de felicidade cabíveis; estimule cooperações, desencoraje competições, aumente salários, flexibilize horários, coíba assédios, ofereça cursos, providencie mais juntice de pais e filhos, forneça alimentação boa e fresquinha, arrume jeito de a equipe se cansar o mínimo possível no trânsito. DU-VI-DO que criatividades, assiduidades, ideias, motivações não se everestem com impulso de catapulta.

Quero nem saber o que prega a coachlândia; me recuso a apoiar aquela conversaiada besta de "botar tubarão no tanque" para fazer os peixinhos nadarem e outras patifarias. Concordemos sobre o quanto é absurdamente sádico (e burro, né? buuuuurrrrrro) falar em promover não o bem-estar alheio, e sim seu INCÔMODO, sua autoimolação, com vistas ainda por cima a um ganho que é de outrem. Nã, nã, nã, sou totalmente team Schweitzer e faço profissão de fé nos benefícios do espalhamento de felicidade: pessoas com saúde em riba, autoestima azeitada e mais segurança de seu valor na carreira adoecem menos, apaixonam-se com mais frequência por projetos refrescantes (porque estão de neurônios livres da urgência de lutar pelo básico), especializam-se mais, desafiam-se mais, networkam mais. Que mentalidade desgraçadamente colonial e cruelmente escravocrata pode supor que criaturas privadas de sono e nutrição decentes, de estímulo à vida cultural e de poder aquisitivo renderão melhor? Essa aberração mercadológica de coisificar humanos e procurar matar neles exatamente o que os faz tão insubstituíveis é loucura que tenderá, espero, a ser eliminada do mundo conforme ele se for fazendo mais mundo.

Se evolução é a única estrada tomável, só podemos evoluir para uma Terra fada-sensata que colha as melhorices de cada gente plantada linda, fértil, largamente em sua zona de conforto.

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