terça-feira, 30 de março de 2021

Criar e construir


Disse o querido Charles Dickens que "a verdadeira diferença entre a construção e a criação é esta: uma coisa construída só pode ser amada depois de construída, mas uma coisa criada ama-se mesmo antes de existir". Se é verdade em todos os casos, não sei – me parece que uma casinha construída muito tijolinhamente, sem grandes designs prévios e quase ao sabor dos fatos, não deixa de ser profundamente amada na inteireza do processo –, porém convenho que aconteça assim em boa parte das situações. Os textos, por exemplo: não sendo eles, no geral, retirados de alguma cestinha Tudo Que Eu Gostaria de Escrever na Vida, não posso dizê-los criados; não têm eles em mim qualquer realização precoce, toda do Mundo das Ideias; não formam um desejo ou um sonho – representam simplesmente edificações de momento, levantadas do chão conforme a necessidade e amadas ou desamadas conforme sua efetivação. A alguns escritos dedico ternura, uma vez nascidos; a outros dou quase que apenas o olhar ligeiramente aliviado do pós-parto, sem fazer grande questão de convívios e revisitas. Não há padrão, exceto o de não haver, tampouco, a paixão das idealidades, e sim o afeto das coisas constatadas.

E normalmente acho positivíssimo esse afeto das coisas constatadas, trabalhadas, construídas – o amor real que não começa incêndio, que não é a fornalha adolescente de Romeu e Julieta (ei, eu adoro Romeu e Julieta; mas tem condição?), que não é logo na primeira estrofe a perfeição platônica; o amor da terra arada e encarada, semeadinha de vigilâncias pacientes contra pragas e pestes, contra infertilidades e intempéries e predadores. Em 98% das vezes, avaliaria meu DataChute, é esse amor despido de exigências fabulescas e projeções fabulosas que bota raízes inquebrantáveis – não que ele seja sisudo e estranho à alegria, muitíssimo ao contrário: se há um amor fadado ao mau humor que se segue às decepções, trata-se daquele que teve alicerce de fumaça, o criado, o inventado na cabeça sem levar em conta as pequeninices da rotina. Isso tudo (acredito) se aplica lindamente ao amor entre humanos. Em face dos últimos acontecimentos brasileiros, no entanto, já não sei satisfatoriamente bem se se aplica à relação entre humanos e países.

Porque vejam: será que criamos suficientemente, muito para nós, a imagem de um Brasil idílico, desejável, apetecível a ponto de o adorarmos com o ardor cantado no hino? Me apresso a esclarecer que – PELOAMOR – eu não me refiro de NENHUMA forma àquela palhaçada de "ame-o ou deixe-o", àquele nacionalismo fake, nojento e estúpido (como aliás são todos os nacionalismos) dos energúmenos que estão assentados no Planalto e de seus mentores; nem mesmo me refiro ao entusiasmo menino dos meninos românticos que amo tanto, mas que pareciam somente engatinhar na história de que nossas várzeas têm mais flores, nossos bosques têm mais vida e derramamentos afins. Não falo de uma criação do Brasil relacionada às abundâncias naturais que já temos ou a qualquer platonização canalha do que alguns querem que pensemos ter (a tal democracia racial, por exemplo, que até hoje nunca vivenciamos). Falo de uma criação do Brasil como uma meta de país que não somos, jamais fomos, porém nascemos para ser – uma meta de país que realmente apaixone o imaginário popular para muuuuuuito além de futebóis e carnavais; um destino social e político.

De 1500 para cá (com raros hiatos de um projeto distinto), o Brasil foi montado erradissimamente, foi-se construindo todo na extração, na exploração, na escravidão, na usurpação, com o sufocamento expresso e sumário das várias tentativas de reposicioná-lo como terra de justiças e plenitudes. Sua face mais próxima da "verdadeira" – criativa, acolhedora, rebelde, bem-humorada – cresceu às margens dos discursos oficiais, e no entanto não pôde não sentir a mão pesadona desses discursos, as perseguições, as contradições, as desilusões; o país que deveria ser mal teve tempo de criar-se, ocupado que estava entre sobreviver ao que era e arrumar algum respiro pelas beiradas. Condicionados desde o "início" a uma lógica de vinda-dominação-enriquecimento-volta, nossos ascendentes colonizadores se habituaram a ver no Brasil uma oportunidade, um hotel, não uma casa; e nossos ascendentes africanos, vítimas das maiores crueldades imagináveis, só tinham como ver nele uma terra de violência e sequestro. Que tempo houve, que circunstâncias houve para que o lugar que habitamos se desse à luz como uma perspectiva de igualdade e república? Faltou-nos o contexto do autossonho, o apego embalado por alguma fresta de inocência histórica. Faltou-nos linha do tempo que tornasse possível, para nós, o spark que enlaçou Romeu e Julieta, o encantamento original pela terra que deveria (numa realidade alternativa) PODER ser amada – a faísca do pertencimento.

Não é aleatório, certamente, que gente empenhada em acender essa faiscazinha e reconciliar o Brasil que temos com o Brasil que merecemos – Lula e Paulo Freire me vêm mais de imediato à cabeça – seja a exata gente mais demonizada pelos donos das velhas capitanias; aquelas que sequer construímos, quanto mais sonhamos. Um povo que garra as rédeas da narrativa é a Cuca que ameaça diretamente o cerne do poder de antigos senhores, acostumadinhos a vender o país ou como algo pelo qual não se luta, ou como uma estrutura sagrada que não se questiona. Pois que se reacostumem os tradicionais parasitas a nos ver lutando, questionando e criando um roteiro fresquinho para as próximas 500 páginas: nunca estamos longe demais para uma viagem de redescobrimento.

Deixa que desta vez a gente dirige.

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