quinta-feira, 22 de abril de 2021

As contribuições milionárias


Disse um aniversariante do dia que "não somos ricos pelo que temos, e sim pelo que não precisamos ter" – ou em outra versão: "Não somos ricos por causa das coisas que possuímos, mas pelo que podemos fazer sem possuí-las". Boa, Kant, garoto de 297 aninhos completados hoje (dá certo alívio concordar com um dos maiores filósofos já havidos na História); é absolutamente nonsense revista-forbesar um cidadão pela quantidade de traquitanas que têm seu nome na escritura ou na nota fiscal – traquitanas que o sujeito em questão normalmente não inventou, não construiu, não montou, não pintou, não lapidou e não conseguiria de reininhum reproduzir, se necessitasse. Muitississíssimo pior é pedestalizar esse mesmo sujeito por ganhar uma cacetada de números (registrados dentro de outros números) a partir da manipulação de mais números, de entidades que foram ironicamente apelidadas de ações e que consistem, na verdade, em totais abstrações insemeáveis, incolhíveis, inúteis para o mundo. Não faz porcaria de sentido algum atribuir mais consideração e mais milionaridade a criaturas inaptas para aguentar (sem dar piti) demoras de 2 minutos e para lavar decentemente a própria privada.

A Terra segue em frente bastante bem – consideravelmente melhor, inclusive – sem esses comédias que parasitam tempo, espaço, trabalho alheios e ainda são bajulados por isso; a mesma Terra ficaria mil vezes mais insustentável, no entanto, se não pudesse contar com as cabeças genuinamente milionárias, as que se transbordam em curas, vacinas, plantios, engenharias, marcenarias, serviços sociais, lideranças comunitárias, cortes, costuras, arquiteturas, navegações, aeronavegações e demais produtividades. "Mas muitos ricos também tiveram ideias geniais, e também doam grandes quantias para caridade e pesquisa." Claro, houve riquezas principiadas por ideias geniais e eu nem estaria digitando aqui no Windows se não fosse assim, porém dificilmente um saldo bancário engorda de maneira obscena somente por causa de genialidade do dono do saldo; a praxe é que vááááárias genialidades e esforços se coloquem a serviço (e BOTA serviço nessa história) de um primeiro interessado, mas jamais enriqueçam como ele – enquanto familiares mais próximos a ele acabam enriquecendo sem quaisquer genialidades ou esforços. Convenhamos: se bastasse inteligência para a recompensa numérica vir à altura, gênios nenhuns teriam morrido pobres e irreconhecidos, e infelizmente esses não faltaram. Quanto a doar dinheiro para caridade e pesquisa, sorry, mas não fazem nadinha mais que a obrigação – principalmente levando em conta, no primeiro caso, que o aumento global das fortunas tende a estar relacionada com o aumento das misérias, portanto qualquer compensação é ainda uma pálida e desproporcional tentativa; e, no segundo caso, que a obesidade das contas bancárias se deve basicamente a pesquisas alheias anyway, que são os técnicos e cientistas as minas de ouro quase literais (quem, afinal, desenvolve as tecnologias cuja venda enche a burra dos donos do camarote?), além do fato de os próprios mecenas, na condição de humanos, serem igualmente beneficiários e usuários dos remédios e produtos desenvolvidos. Grana para que o planeta gire se arranja: não é uma mera convenção social, seja em pedaços de papel, de metal ou de algarismo? O que não se arranja por simples combinado público são o conhecimento itself e a materialização dele advinda – estes, sim, rebeldemente alheios a que se sente ou não se sente em toaletes folheadas a ouro.

A abastança socialmente valorizada como tal não passa de delírio coletivo, de um pacto estúpido e fetichizante em torno de mistificações; em torno, por exemplo, de nomes escritos em etiquetas costuradas por gente que ganha centavos no processo, e ostentadas por quem seria incapaz de pregar um botão. Não que seja sine qua non pregar botões, vocês entenderam: o sine qua non é justificar a própria existência contribuindo de alguma forma para facilitar a do vizinho, gerando alegria arte beleza alimento ajuda medicina serviço, enchendo de algo melhor os dias, trazendo algo ao planeta em restituição ao que dele absorvemos. Evidentemente, quaisquer noções lógicas de justiça demandariam que os mais cumulados de favores e recursos fossem, também, os mais cumulantes, os mais distribuidores de farturas – mas tão desconcertados são nossos métodos que a tendência é bem contrária, e em geral, conforme comentei, maiores riquezas produzem exatinhamente maiores pobrezas. Não me peçam, pois, "respeito" aos ricos; respeito-os, sim, porém só os originais de fábrica: os que não necessariamente possuem, e sim se fazem fontes de bens jorrados de talento e trabalho.

Ter deixado o planeta melhor do que era em sua ausência – esta, sim, a verdadeira ostentação.

Nenhum comentário: