segunda-feira, 19 de abril de 2021

Amar além da máscara


Faz hoje 23 anos a morte do poeta, ensaísta, diplomata mexicano Octavio Paz, um assombro com as palavras, devidamente nobelizado em vida (foi de Literatura, naturalmente, o Nobel do Paz, conferido em 1990). Lê-lo é ler lindezas seriais, como esta: "O mundo muda quando dois se olham e se reconhecem... Amar é despir-se de nomes". E esta, para salgar um bocadinho a doçura da primeira: "Mas enquanto vivemos não podemos escapar das máscaras nem dos nomes e pronomes: somos inseparáveis das nossas ficções – das nossas facções. Estamos condenados a inventar uma máscara e a descobrir, depois, que essa máscara é nosso verdadeiro rosto". Perdoem quaisquer variações escapadas, há sempre mais versões do que seria desejável, como sabem; mas é bem ilustradamente esse o teor.

O querido Paz nos abandonou no mundo muito antes de saber até que ponto denotativo chegaria a fatalidade das máscaras. Estas que portamos pff2mente, no entanto, são só as segundas, as sobremáscaras, e embora incômodas estão décadas atrasadas em relação às mencionadas pelo autor, no que se refere à contenção do livre respiro. As citadas por Paz não são, em geral, arrancadas do rosto na volta da rua ou do expediente: afivelam-se tão fundo e desde tão cedo na carne – carteiras de identidade vestidas no berço – que tirá-las não é opção. Somos quase que sempre um outro; alguém que, mesmo em criança, fala mais ou fala menos do que o coração pede, ri fora de vontade e engole o choro por vergonha implantada, aprende a ostentar coragens fake e a sufocar a sinceridade do medo, a desenvolver ou fingir indiferenças e a domar o espontâneo dos afetos. Muito dessa máscara, claro – assim como o acessório aporrinhante que a pandemia nos exige para o bem –, é absolutamente essencial ao convívio, ou o mais provável seria matarmos uns aos outros bem mais do que de praxe, tão galopantes e desembestados se mostrariam os bilhões de IDs simultâneos (OK, milhões, talvez milhares: nunca conseguiríamos ter enfiado a população atual no planeta, já que uma das metades defenestraria a outra e até a reprodução da espécie seria no mínimo duvidosa). Só que o mesmo disfarce social que torna viável a comunidade acaba, nada raramente, tornando asfixiada a individualidade, a depender da violência com que o ambiente aferrolha a máscara. Estamos melhorando, estamos melhorando; mas o caminho é ainda doloroso e longo até que os núcleos sociais aprendam a distinguir sabiamente entre o que convém domesticar para o bem comum e o que é, em todas as instâncias, pessoal e inatingível.

Aí vem Octavio Paz e lembra o que pode nos meter um raio-X para além de substantivos, adjetivos e demais rotulações mascarentas: o amor pode. Sua radiação é fina o suficiente para olhar e reconhecer, ainda que a percepção não seja sempre consciente e não signifique um apaixonamento à primeira vista, nem precise efetuar-se no primeiro encontro ou sequer ser romântica; o amor, ou o que virá a ser amor quando convenientemente enraizado, sabe com muitíssima sutileza medir o terreno, descriptografar os sinais, como o marujo com cancha para ler a quantidade de sol no vento ou a futura tormenta numa nuvenzinha. A vaidade, o sonho, o interesse, o desejo, o intento, a pretensão podem enganar-se inventando o escrito onde não há escrita, ou ignorando em benefício próprio aquela que há; o amor não, o amor original de fábrica não se engana – pelo menos da boca para dentro não se engana. Sonda, conhece, adivinha; capta belamente as dores que transbordam pelos buraquitos da máscara (1 micromililitro de dor é o bastante para sua análise pericial); identifica uma solidão com características semelhantes, uma aspiração de feitios complementares, um pavor profundo e irmão, uma inteligência gêmea que escoa para as mesmas conclusões. Não é uma ciência imitável (apesar dos esforços dos algoritmos), dá-se com eficiência e pronto: dessuperbondiza a máscara mais superbondizada e fornece automaticamente – do reconhecedor para o reconhecido – uma lufada de liberdade quase cósmica, o insubstituível oxigênio da aceitação. Aceitaçãããão de fato e de direito, com todos os tracinhos da bateria preenchidos que nem milagre.

Mas uai, o amor é isso – o milagre. A tecnologia máxima de leitura sem idioma e de identidade sem identificação (ou o contrário?). O scanner que dispensa QR code e o grito de chamamento que não olha crachá.

O amor vai aonde a verdade está.

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