domingo, 18 de abril de 2021

Portão aberto


Meme fofo com catioríneo feliz, orelhas ao vento, passando na minha timeline: "Viva como se alguém tivesse deixado o portão aberto". Esbarrei no mundo com poucas ilustrações e definições tão precisas da joie de vivre; é isso, existir como que em estado de encantamento perene pela mera autorização de fazê-lo, maravilhar-se com o fortuitamente normal como se trajado para uma noite de Oscar. (A falar em Oscar, quem assistiu ao desenho Soul – assistam! –, de que falei aqui recentemente, tem na alminha 22 outro molde perfeito do viver parnasiano, o viver pelo viver, o alumbramento pelo alumbramento; tanto para 22 quanto para o cãozinho corredor do meme, tudo são férias, não mais que de repente e sempre. Um talento a desenvolvermos para ontem.)

Óbvio, estamos em tempo de pandemia declarada e de fascismo explícito, há no Brasil alguns genocídios em curso – de covid, de fome, de agrotóxico, de morte pela polícia, de coração partido e outras figurinhas autocolantes do álbum do apocalipse –, ninguém anda muito exatamente no clima de saltitar pelas ruas como um doguinho no parque. Não sou tralalá da vida para esperar ou defender que o façamos. Porém não podemos tampouquinhamente desistir – nem que seja para tirar da gente nefasta o gosto de nos ver na sarjeta emocional. Qual a alternativa mais lúcida ao aniquilamento das almas de resistência, comemorado e promovido pela fascistaiada? combinarmos de não morrer (com o perdão de Conceição Evaristo pelo empréstimo), combinarmos de existir o mais incômoda e em-voz-altamente possível nas beiradas do horror, nas frestas, nas aberturas onde corre o vento, irritando ao máximo os Comensais da Morte com a nossa permanência movida a energia solar, com a nossa teimosia autossustentável. Se a infelicidade extrema tem sido largamente patrocinada por essa rede afiliada do inferno, nada mais justo do que divulgarmos herculeamente o produto da concorrência.

Como? Nos permitindo. Nos dando o direito sagrado de correr porta afora (me-ta-fo-ri-ca-men-te!) a cada vez que a gangue dos horrores vacilar em fechá-la. Não nos tolhendo em excesso com a nossa triste prudência em comemorar adiantos de vida. Tipo: o Lula voltou a ficar ELEGÍVEL, pode também voltar a ficar PRESIDENTE; vou lá ficar me dando chicotadas de pessimismo e me dizendo "evite alegria", porque eles ainda podem desenfiar da cartola alguma mutreta para tirá-lo do páreo? Eu é que não, amigues! vou me dedicar à doidura de felicidade de abarrotar o feed com posts festivos, vou deixar o coração sapatear um musical da Metro por causa da pesquisa que dá vitória ao barbudinho no segundo turno; vou, sei lá, estar esperançosa até prova em contrário, insuportavelmente. Da mesma forma, se conseguir me manter um tantão de tempo em casa, desonerando a rua e quaisquer outros ambientes de minha presença, vou celebrar como conquista: menos uma para ser vetor de vírus na comunidade. Se, vindo a sair, for com a perspectiva de voltar vacinada, vou celebrar como quando já é Natal na Leader, já é hora. Se encomendar pão francês nas próximas entregas e ele chegar estalando de fresco, vou celebrar como se tivesse recebido delivery de algum estrelado Michelin. Se não for meu horário de corrigir interminabilidades de coisas no Google Classroom, vou celebrar como se me tivessem concedido uma pulseirinha-ingresso da Disney. Aliás, se algum momento no futuro pós-pandêmico-pós-bolsonarista me conceder a graça de voltar à Disney, vou celebrar como se houvesse papado um Nobel (e a grana do Nobel) para o currículo – embora eu prefira que o deem ao Lula.

Respeitemos o mais rigorosamente as regras do quarentenamento físico; mas, queridos, nenhuns estudos indicam que a alma tem de estar quarentenada. A cada porteirinha que se abrir eu (pelo menos) pretendo me evolar em disparada no susto de felicidade, povoando sem pudor toda chance mental de jardim secreto. Razões práticas: como quem abandona a masmorra e precisa, aos poucochitos, reacostumar os olhos à luz, vou-me fisioterapiando desde logo para suportar sem abalos a surra de claridade que HÁ DE nos inundar em 2023. Dou-me a tarefa da esperança inoxidável e treino para revivê-la – que só na fé teremos conseguido revigorar e reviver a estrela.

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