sábado, 24 de abril de 2021

Espelho, espelho nosso


Sabem aquela cena despedaçante da Grazi Massafera em Verdades secretas, na qual sua personagem Larissa vai progressivamente entrando em desespero ao ver a própria imagem devastada, desgrenhada, emagrecida, sem brilho no cabelo e na pele, dentes amarelados e destruídos por efeito do vício no crack? Então: digamos que, se Larissa fosse o Brasil, o Censo seria o espelho.

A questão é que para Larissa HOUVE um espelho, e certamente ele teve um papel importantíssimo na futura decisão da jovem de abandonar o crack.

Em nosso pobre Brasil cracudo de negligências, de opressões, de desmatamentos, de armamentos, de preconceitos, de fake news, de péssimas práticas econômicas, de irresponsabilidades assassinas, porém, são exatamente os fornecedores dessas tantas maravilhas que detêm o poder de colocar em nossas mãos o espelho – sobretudo, são os que detêm o poder de NÃO colocá-lo. E já avisaram: NÃO o colocarão. Eu, hein, pra que essa história de ficar se conscientizando da própria decadência e de repente, sei lá, começar a ter ideias de que o caminho a seguir não é este, é muitíssimo outro e fica muitíssimo longe da atual cracolândia política? Nã, nã, nada de Censo, você está lindo e saudável, está tudo bem; permaneça aí quietinho enquanto sapateamos furibundamente sobre o seu processo de cadaverização galopante.

Queridos: não ter Censo Demográfico é o cúmulo do píncaro do auge do coroamento da glorificação da ignorância, do autoabandono, da autodesistência. Não realizar Censo Demográfico é se saber ou se desconfiar doente e fugir a qualquer hemograma, a qualquer raio-X, a qualquer mecanismo de diagnosticar o foco do mal para tratá-lo, numa persistência obsessiva de morte. Aliás, minto injustamente; a metáfora não assenta redondo, visto que nós – pelo menos nós que estamos inocentes de eleger a necropolítica em vigor – somos pleno Brasil e não nos abandonamos nem temos crush na morte, ao contrário, andamos babando de revolta com a decisão de cabular o recenseamento à nossa revelia. O que assenta como uma luva é a espetacular definição dada no Face pelo meu Fábio: "Cancelar o censo que revelaria o país pós-pandemia é, no caso de um governo genocida, impedir a perícia depois do crime". (Depois do crime e antes do retorno às urnas – vale sublinhar, negritar, italicar e envolver em painel neon.)

Proceder ao Censo Demográfico não é ficar contando carneirinho durante o expediente. Não é um correr de bolinhas no ábaco: é uma radiografia. É acompanhar as flutuações de poder aquisitivo, o impacto dos governos e desgovernos na alimentação e nos hábitos gerais de consumo, as transformações no nível de instrução; é compreender como os espaços urbano e rural vão se reorganizando e por quê, e quais as necessidades que disso vão sendo criadas; é apurar onde faltam hospitais, escolas, saneamentos para servir a núcleos populacionais que se desenvolvem; é entender como os movimentos identitários influenciam mudanças de autopercepção com relação à cor e à crença; é perceber o crescimento de novas organizações familiares, prever alterações no mercado de trabalho conforme as taxas de natalidade e mortalidade, saber até (reforçava um especialista no JN) como planejar campanhas de vacinação articuladas ao tamanho e distribuição de faixas etárias. Recensear é visitar, com a mais empenhada capilaridade, cada cantinhozinho deste continentão de diferenças, a fim de chegar o mais perto do Brasil real mesmo no vácuo do vácuo, no invisível do invisível a quaisquer outros acessos; e é, conhecendo o Brasil real, gerar dados para todos os estudos de todos os setores, possibilitar que os projetos de todas as áreas sejam adaptados a circunstâncias efetivas, não fantasiosas. De que forma trazer remédio a um doente que não se examina? auxiliar uma vítima que não se ouve ou vê? alimentar e instruir vidas que não surgem no radar? abrir estradas e alternativas para deslocamentos que não aparecem no mapa? Saber, saber, saber, saber – eis a única via, a única chance, a única luz passível de criar futuros e salvar uma nação sonâmbula da morte certa.

Que medo há, hein, criaturas governamentais? Vocês mesmas insistem todo dia: a verdade liberta.

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