quarta-feira, 14 de abril de 2021

Os abismos

Leiam Eça: "A curiosidade, instinto de complexidade infinita, leva por um lado a escutar às portas e por outro a descobrir a América". Se não é assim a citação – porque há variantes –, é quase assim. (De qualquer modo o querido pai do primo Basílio me desculpe, mas não creio tenha havido na "descoberta" da América esse tanto de curiosidade – pelo menos não o mesmo tanto que houve de avidez e ganância; pulsasse a curiosidade realmente, diversíssimos povos teriam sido estudados e poupados, não espoliados e destruídos. Mas enfim.) Aqui de minha parte, a ambição de curiosa incorrigível é grande e, no entanto, seletiva; provavelmente eu seria, como navegadora, uma ótima desbravadora de bibliotecas. Minha curiosidade é muito maiormente a das portas falantes, a dos motores, amores, lendas, micrologias, constâncias e desvios psicológicos, loucuras e desejos humanos, do que a da busca dos big fatos, das hard news. Gosto da História por dentro e pelas beiradas, episódica e representativa; tenho zerérrima paciência para conquistas, reinos, Sacro Império Disso, República Federativa Daquilo, e independências e secessões e o raio que as parta. Nada de muitas granduras. Quero as coisas mais verticalizadas e amiudezadas: que espécie de gente era aquela, como amava, como vivia, como punia, que rituais fazia, com que tretas se avinha; as histórias com agá minúsculo, basicamente, de preferência com inclusão das mais polpudas fofocas psiquiátricas. Nessa toada, meu mundo escorregou para ser Criminal minds, Cold case, garimpos em sebo, Investigação Discovery, programas de vestido de noiva, livros de pleno, de ultra e de pré-Romantismo – só e só as minúcias do humano, desde os olimpos do amor até os abismos d'alma; nem climas nem relevos, nem datas nem arquiteturas, nem leis nem estatísticas nem vidas oceânicas me interessam, a não ser pelo que possam conter ou gerar de lendário. Estou quaaaase Bernardo Soares: "Sobre as emoções tenho curiosidade. Sobre os fatos, quaisquer que venham a ser, não tenho curiosidade alguma".

Eu disse quaaaase; infelizmente, não posso ignorar fatos que desvendam um pouco mais de nossa estranha constituição interna, como os associados à morte do pequeno Henry, por exemplo; a cada descoberta, a cada acréscimo de detalhe sofro o efeito rebote de uma perplexidade maior, de uma sensação mais abrangente e angustiosa de: meu Deus, o que é isso, como pode ser isso. Quem tem a curiosidade da engrenagem mental (psicológica, e não biologicamente falando) inevitavelmente se espanta em topar com novidades obscuras onde pareciam existir apenas velhidades tristes. No caso, as impressões imediatas já apontavam para a horrorosa praxe do padrasto abusivo, ameaçador, violento, o que bastaria para chocar qualquer portador de miocárdio; porém o desenrolar não cessa, os depoimentos das ex do tal doutor mostram um matador de criança em formação – a escalada de agressões não deixa dúvidas de que, mais dia menos dia, o ódio voltado aos pequenos teria o desfecho de agora –, e o histórico de ações e mensagens da mãe... reticências para respirar... não é que choque mais ainda, mas me aturde de maneira diferente. Por onde, observando o que surge nos jornais todos os dias, se acaba de entender o humano? A mãe que até prova em contrário sempre fora dedicada, carinhosa, aparentemente teve logo a noção dos maus-tratos dirigidos ao filho, e no entanto tentou "administrá-los" (como se fosse possível) em vez de eliminar-lhes a fonte! Que de algum modo fosse ameaçada, aberta ou veladamente, vá: é uma hipótese plausível, embora não uma justificativa. Mas essa suposta pressão combina com o fato de a investigada fazer selfie semissorridente na delegacia? ir ao salão dar um trato em pé, mão e cabelo logo após a morte do filho único? mostrar interesse em cursos de inglês e culinária horas após o enterro? Sem me atribuir o direito de julgar o que não me cabe, compartilho pelo menos isto: a imensa frustração de olhar, olhar e continuar atônita com quantas veredas nos atravessam, quantos paradoxos nos formam. Quem dera explicar. Quem dera compreender.

Me perdoem o exercício de elucubração a respeito de circunstâncias tão hediondas; não é a curiosidade mórbida de escarafunchar o sofrimento, é a vontade analítica de abrir psiquês e flagrar como raios, afinal, a espécie funciona, e por que faz o que faz. É a vontade sincera não de tacar pedras em Monique (o que aliás seria covardia pela impossibilidade de ela vir aqui defender-se), mas sim de ter instrumentos para mapeá-la. Só um profissional que a atendesse há muito os teria. Arrisco, entretanto, uma constatação, por saber que não se trata de um apontar de dedo: nas mensagens para o pai de Henry, Monique demonstrou a intenção de inscrever o garotinho num curso de teatro, o que representaria mais uma atividade entre as diversas que ocupavam sua agenda infantil. Dias atrás, ao sabê-lo, comentei que ela talvez estivesse procurando afastar o menino do padrasto pelo máximo de tempo. Vendo sua reação, agora, de buscar novos cursos para si, pensei tristemente se não continuava reproduzindo uma espécie de mecanismo de fuga, uma tentativa inconscientemente desesperada de se afastar também. O quanto conseguisse. O quanto pudesse.

Pode ser, pode não ser; sei lá – sou terrivelmente leiga no assunto, e mera espectadora, como quase todos, dessas notícias partidoras d'alma. O que unicamente me compete é tentar extrair, do que nos chega, alguma percepção mais ampla do que realmente somos ou podemos vir a ser; tentar recolher dados do que nos torna mais ou menos letais. Não é descobrir a América, mas também em nós o navegar é preciso: tem que ser autoconhecedor quem quer fazer o mundo passar além da dor.

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