quinta-feira, 1 de abril de 2021

Dos necessários abrigos


Olha, Da Vinci (se foi realmente o grande Léo que mandou essa letra – embora aqui a autoria não afete em nada o teor); olha, a ideia é bonita demais da conta, mas HAJA meditação e evolução espiritual, meu lindo. A ideia, no caso, é a seguinte: "A paciência faz contra as ofensas o mesmo que as roupas fazem contra o frio; pois, se vestires mais roupas conforme o inverno aumenta, tal frio não te poderá afetar. De modo semelhante, a paciência deve crescer em relação às grandes ofensas; tais injúrias não poderão afetar a tua mente". Simplesmente maravilhoso e enormemente verdadeiro; eu só não diria totalmente verdadeiro por existir, nessa interessante comparação, também o seu tantão de injustiça. Me abstenho de completar "e de canalhice" porque se trata (se trata?) do querido Léo, e seria anacronismo repassar-lhe a fatura do emprego patife que se poderia dar a suas palavras hoje em dia – mas que é bom conservá-las loooonge da galera coach-quântico-meritocrata-gratiluz, lá isso é.

Vejamos. Léo, se foi ele, mandou bem como sempre ao botar em nossas mãozinhas a chave de uma sala que podemos alegremente trancar por dentro: assim como é mais viável controlar a quantidade de roupas do que controlar a temperatura, fica bastantemente mais acessível ajustar o isolamento acústico interior que impedir a barulheira de fora. Num primeiro e muito direto nível – em que se trabalha com o ideal, ou ao menos com o médio –, está certinho: pressupõe-se que nem o frio nem a injúria são mortais, e que a vítima, nos dois casos, passa algum desconforto mas dispõe de tudo que é necessário para defender-se naquele momento, o qual não reverberará para além de si. Essa pressuposição, no entanto (já dizia Lulu), é ideia que não tem a menor obrigação de acontecer: o frio pode muito bem ser de proporções siberianas e superar fatalmente todo e qualquer agasalho, o indivíduo exposto ao frio pode muito admissivelmente NÃO POSSUIR qualquer agasalho para se defender da morte ainda que queira, a ofensa pode muito crivelmente extrapolar a cerquinha da briga pessoal e enlamear de modo quase irreversível a vida pública, a paciência pode perfeitamente não ser arma que chegue contra uma máquina institucionalizada de difamações. Em suma: por melhor que tenha sido a intenção e por maior a lucidez de Da Vinci ao sapecar aquele pensamento – que não está errado –, não é justo reproduzi-lo jogando ainda mais na conta da iniciativa individual a solução de questões que frequentemente a superam.

Quando o frio é excessivo para as forças e os recursos, não basta a vontade do casaco: deve haver quem financie o casaco, quem garanta o mínimo de abrigo e calefação, o mínimo de bebida e comida quentinhas. Quem morreria congelado por gosto, se pudesse evitá-lo? E, não podendo este alguém evitá-lo, a quem cabe fazê-lo senão ao olhar zeloso do Estado, que não se justifica se sua existência não conseguir representar também a existência de seus cidadãos? Da mesma forma (hoje trago tudo, sim, para o rés do chão, que não estou muito de veneta para abstrações e comparações e metáforas), quando o agravo é excessivo para as forças e os recursos, não basta a vontade da paciência, da ioga, da elevação espiritual, da psicanálise; quando o bullying devora a saúde e a autoestima, quando a demonização de anos pela imprensa resulta em destroçamento da imagem e até dos direitos políticos, quando o linchamento virtual promovido por gabinetes de ódio trava a carreira, a paz, a vida, quando boatos criminosos levam até a um linchamento real – só a intervenção de instâncias sociais, jurídicas, muito superiores à mera determinação particular, oferece algum grau razoável (se bem que ainda insuficiente) de proteção. Esperar que pessoas já emocionalmente fragilizadas por afrontas profundas e recorrentes ganhem, por milagre, o dom de pairar sobre todas as dores e suas consequências enquadra-se como cumplicidade numa asfixia; configura, nem mais nem menos, passar de barco no pertinho de um náufrago que se esgota às braçadas e considerar que a energia do nadador dá e sobra para o salvamento.

Pronto: aí as metáforas novamente como leitura possível do mundo. Mas, desde que não se usem para falácias e amaciamentos de falsos paralelismos – paciência.

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