segunda-feira, 12 de abril de 2021

Quais erros


Definiu extraordinariamente Scott Adams, cartunista norte-americano que deu à luz os hilários quadrinhos do personagem Dilbert: "Criatividade é permitir a si mesmo cometer erros. Arte é saber quais erros manter".

Não é? a estupidez do mau senso comum precisa largar dessa história de que arte é bagunça, ou de que qualquer bagunça estética que se cuspa numa superfície pode ser arte. Esclareço que NÃO estou julgando nem criticando obras que tenham sido selecionadas para exposições e que, por suas características inusitadas demais para o gosto médio, geram ou geraram aqueles velhos comentários entre risos: "Mas rapaz, isso daí eu também faço"; "Minha filha de três anos desenhou um troço bem parecido ontem". Estou, muito opostamente, criticando os pseudoartistas e os pais de supostos Picassos de três anos que se dão ao desfrute de fazer esses comentários. How dare you? te enxerga, meu consagrado; a peça ali exibida não nasceu duma topada que um transeunte deu na rua, foi pensada, deliberada, imbuída de um propósito, de uma proposta. O autor ou autora selecionou e misturou cores, recolheu e mixou materiais, lixou, colou, cortou, esculpiu, mediu, filmou, inventou uma técnica, decidiu uma irreverência, deixou para o título 90% do impacto da coisa, não importa: produziu algo com uma visão, uma mensagem e/ou o broto de um debate em mente – produziu algo que você, especialista de WhatsApp, crítico de churrasco, ovo-colombamente faria, mas não fez. Não foi você que meteu um mictório na exposição sem ser para uma reforma nos banheiros do espaço. Não foi você que reproduziu uma série de retratos da Marilyn com colorações distintas. Não foi você que pintou formas retangulares de cores primárias. Então baixe docemente a bolinha, ó protoColombo da arte moderna/contemporânea, e preste atenção aos erros e acertos que os verdadeiros fazedores resolveram manter.

Tem embuste entre os artistas? Tem embuste em todo lugar; presume-se, no entanto, que o acervo de galerias, museus e instituições afins passe por curadorias que não selecionam obras de orelhada, que seguem critérios técnicos, estilísticos, lá quais forem. "Tá, mas e quando são vendidas por um preço absurdão pinturas que na verdade foram feitas por criancinhas e elefantes?" Pode acontecer, e quando acontece o mais usual é que se saiba perfeitamente que tais e tais telas foram pintadas com a tromba; também se agrega valor com o pitoresco. Quanto a miniMonets, bem, não duvido de que aconteçam mistificações da parte de pais que desejam "provar" que aqueles rabiscos qualquer um faria, porém nada impede que haja rabiscos infantis dotados de inconsciente potencial artístico; crianças são pequenos humanos, afinal, e seu estágio de liberdade criativa assemelha-se muito àquele buscado por boa parte dos mestres adultos – o próprio Picasso afirmou que "todas as crianças nascem artistas, mas a dificuldade está em continuar a sê-lo quando crescem". Continuar a sê-lo implica desenvolver o discernimento sem perder a pureza de selva dos primeiros impulsos criadores, sem desonrar o material colhido na bruta mina: pacotão explosivo do arranque com a lucidez, do rompante que se entrega com o entendimento que se pensa.

Arte não é só fazer, é fazer de propósito – abraçar com diligente lealdade o chamado erro, inclusive. O não artista dança valsa quando ele e todo mundo ouvem valsa; o pseudoartista acha superconceito dançar samba de gafieira quando ele e todo mundo ouvem valsa; o artista cria uma cabine onde ele ouve e dança valsa enquanto todos os demais, descabinados, ouvem e dançam samba de gafieira. É erro? sim – fora da cabine.

A arte é construí-la.

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