domingo, 25 de abril de 2021

Ainda vida


A encomenda do Hortifruti chegou com frutas tão lindíssimas, tão plenas em suas cores-base, que não pude deixar de comentar: nossa, mandaram frutas de fruteira, dariam um belo quadro de natureza-morta. Vai daí que me peguei pensando por que pitombas a turma das artes plásticas chama natureza-morta até a imagens de frutas, flores etc. de aparência viçosa e vivíssima, embora naquele estado de limbo rumo à degradação inevitável. E vai daí que considerei o quanto, nesse caso artístico, eu prefiro a correspondente nomenclatura em inglês still life – a rigor, vida em suspenso, simpaticamente traduzível porém como ainda vida: um jeito muito mais "copo meio cheio" de olhar para o que virá sim a perecer, mas que por enquanto se encontra exatamente nisso, num por enquanto repleto de cores, sabores, promessas incompatíveis com a desistência. Uma rosa, um pêssego aveludados mesmo ao toque dos olhos são definitivamente resistência; embalagens recheadinhas de gosto e perfume, portadoras de natureza fresca, pulsante, em prontidão para o consumo ou o plantio até prova em contrário.

Até prova em contrário, não estamos tampouco natureza-mortos, por mais que nos iludamos (ou se iludam) de nossa aparente imobilidade de rotina. Achamos, frustrados, que o tempo escorrido em quarentena é sem palpitação e seiva, e no entanto os açúcares continuam em adoçamento e a polpa em maturação, estejamos ou não enraizados nas velhas práticas; assim emnosmesmados como andamos, não cessamos de agitação viva, não interrompemos (antes intensificamos) o rio de sinapses que o trabalho nos demanda em readaptações, não deixamos de absorver (antes absorvemos mais) ficções escritas e filmadas que vão se entrelaçando modificantemente em nosso DNA emocional, não perdemos a oportunidade (antes as temos aos borbotões, e não pelos melhores motivos) de nos fazer apoio dos amados, essenciais à nutrição alheia. Com ou sem rua, nossas ideias formigam em perpétuo deslocamento; com ou sem viagem, temos acesso a mui suficientes chances – em forma de textos, vídeos, documentários – de visitar realidades inéditas e arrancar preconceitos daninhos; com ou sem o ambiente do emprego, nossas veias fervem de antigos e recentes aborrecimentos laborais, e se, como falam, não está morto quem peleja, então eis que o Google Classroom se revela um elixir de eternidade realmente duca.

Ainda é vida com encontros online, já que verdades ali ditas não param de ser verdades fora do Meet ou do Messenger. Ainda é vida com cultos religiosos acompanhados pela TV, visto que a jurisdição da bênção sacerdotal não está restrita a tantos e tantos metros quadrados. Ainda é vida com crianças estudando pela internet: não consta que o remotamente aprendido tenha maior licença de desexistir do que o aprendido de perto. Ainda é vida com lives de shows e partidas pay-per-vistas – não há o amassamento do público, de fato, nem bebida quente e cachorro-frio comprados por 50 reais em quiosques abarrotados, porém as emoções de músicas e bolas rolando são bem essencialmente similares. Ainda é vida: não estamos congelados em berço esplêndido, estamos lendo, elaborando, supervisionando, inventando, investindo, corrigindo, calculando, editando, rezando, papeando, fazendo cursos, crescendo filhos, dando match em amores, treinando instrumentos, aprendendo línguas. Não fosse vida e ainda assim pareceria imensamente com ela.

O que é da vida não deixa de sê-lo porque foi continuado na tela.

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