quarta-feira, 21 de abril de 2021

É de poesia minha vida secreta


Faria hoje 91 anos a incrível Hilda Hilst, uma das maiores versificadoras do desejo, inacreditavelmente captadora do lírico, como se espremesse o mundo e este virasse um sumo que virasse palavra. De seus versos, o mais bonito creio ser – "Um arco-íris de ar em águas profundas" –, assim mesmo sem nem carecença de contexto, assim absoluto; mas tomo outro trecho de outra série para citar também, não só por boniteza como por identificação: "Porque tu sabes que é de poesia/ Minha vida secreta. Tu sabes, Dionísio,/ Que a teu lado te amando,/ Antes de ser mulher sou inteira poeta". Tão lindo, tão lindo que quase corta na garganta qualquer explanação.

Não posso, nem à maneira de Hilda nem à maneira de Ariana – o eu lírico feminino que se endereça ao amado Dionísio –, dizer que sou inteira poeta no rigor da palavra; quem dera! poemar feito Hilda, Cecília, Florbela, Adélia, Ana Cristina, praticamente botando estrofes pelos poros, muito e sempre. Fui adolescente de versiler e versiescrever em cascata, conforme convém à adolescência, e até durante as aulas cobria de rimas os cantinhos dos livros didáticos, conforme convém aos livros todos (se não servirem para receber versos nos cantos, SINCERAMENTE, hein). Não que eu não lesse em prosa tanto quanto, e aliás com fúria ainda maior; mas convenhamos: poesia, para redigir, é muito mais portátil, estaciona em qualquer vaguinha de papel, não tem burocracias de enredos e continuidades, dotes que favoreciam a produção frequente e clandestina. Eram linhas e linhas e linhas e linhas bem irmãs daquelas dos oitocentistas da minh'alma (irmãs: não disse que gêmeas, naturalmente), exercícios e mais exercícios de expressão – até que fui deixando de absorver e derramar versos tão de assentada, fui concentrando espontaneamente na prosa as tendências palavreiras, com o auxílio luxuoso dos novos recursos: computador, queridos, este ser prosaico em toda a amplidão maravilhosa do termo. Poema tem aquele potencial de passarinho que se acomoda num guardanapo, se der na cisma; texto paragrafento não, demanda muito pulso folha risco rabisco, ou muita paciência habilidosa com a máquina de escrever, que não era dos meus maiores dons. Havendo enfim a chance da digitação livre, frouxa, a um só tempo rascunho e passação a limpo, direto ao fito e à fonte, pronto! desembestou-se; os parágrafos foram, foram e acabaram fondo, ganhando mais a fundo o terreno que começou a só muito espalhadamente brotar estrofes. Modos que (não me surpreende nada constatá-lo em mim) não veio a se manifestar com clareza a preferência sem um largo componente de praticidade e preguiça.

Mas poesia não é significativamente dócil a esquecimentos e não tolera foras, ao menos quando chega ao grau em que vai trepando por livros didáticos; ela estava, sempre esteve, arraigada demais para murchar e acabou-se. O blog aqui é testemunha dumas recaídas avulsas, e eu poderia alegar com inteira sinceridade que são frutos não apenas de formigamento poético, mas de tédio estrutural sobretudo; o pouco romantismo dessa justificativa honestíssima, porém, não impede que haja sim uma vida secreta – não tão secreta – e toda trabalhada em versos, se bem que não escritos. Dificilmente durmo sem ter olhado o céu da noite; sou tão apegada às pequenas flores de cores distintas envasadas na janela do vizinho que me dói enormemente quando ele retira uma delas, já que se atenua o contraste de cores e o das cores com o dia azul; vou orelhando compulsivamente os pés das páginas para marcar as frases bonitas; não consigo me sentir culpada o suficiente desse crime porque vejo poesia nas imperfeições com que assinalamos nossas leituras; poderia ficar anos olhando um beija-flor; gosto das surpresas proporcionadas pelas desarrumações (um ambiente asséptico é coisa que, feliz ou infelizmente, não consigo e fatalmente não conseguirei); enfio tanto os olhos em qualquer detalhe ridículo que abstraio do diálogo e da cena; por sinal, sou tão arrebatada pela beleza pura ou insólita que abstraio de qualquer um, em qualquer lugar (e a vergonha pelo que deveria ter ouvido e não ouvi, visto que estava raptada pelo comercial?); amo nomes franceses; amo sinestesias; quero os jardins densos, caóticos, indisciplinados, não canteiros medidos e versalhescos; prefiro a imprevisibilidade dos brechós e das gavetas há muito não visitadas; tenho loucura por ser aeroporto de borboletas. Sou inteira poeta? não sou; mas uma porcentagem escandalosamente grande crê que tudo é metáfora de tudo, que o ritmo é primordial e que a rima é um vício.

Desde o início.

Nenhum comentário: