sexta-feira, 9 de abril de 2021

As vantagens de ser invisível

Tenho umas tontices do tipo: o vizinho, a vizinha passa em frente à nossa porta rumo à dele/dela e eu sinto a louca tranquilidade de não ser ouvida, uma vez que paira um silêncio usualíssimo aqui no apê, sem absoluta e zeromente nada que chame a atenção. Ele, ela naquele momento não nos escutam, não nos comentam; atravessam o corredor com a inconsciente sensação da tarde mole e normal, e provavelmente sequer consideram nossa existência. Fique claro que nada tenho contra os vizinhos (além do incenso dooooce e odioso que volta e meia me engulha a paz), são conhecimentos só de vista e elevador; eu é que, cá deste lado da porta, me demoro doidamente no gosto de não ser percebida, de me mesclar ao andamento natural das coisas, muito como a Fita Verde de Guimarães Rosa saboreava o comum dos instantes e "divertia-se com ver as avelãs do chão não voarem, com inalcançar essas borboletas nunca em buquê nem em botão".

Certo, as pessoas queremos atenção, precisamos dela; sequer teríamos sobrevivido 60 minutos no planeta sem ela. Mas quase qualquer atenção que fuja à simples escuta cuidadosa – e a suas manifestações de delicadeza, delicadas conforme se espera – me perturba muito, muito; abraço bem o olhar deferente, não o olhar diferente. Em suma: se alunos estão ouvindo silenciosos e acatantes, se numa conversa não me interrompem ou atropelam, se me dão a honra de se lembrarem do que eu disse e o levarem em consideração, UEBA! estou feliz e pimpona da vida. Já se me põem em evidência num cantar de parabéns, numa mensagem animada (vade retro!), num evento, numa filmagem, viro o próprio desconforto; odeio câmeras de vídeo, a de computadores e smartphones inclusive; odeio ser fotografada sozinhamente; odeio postar fotos minhas; odeio até estar num grupo que papeie alto em local público – aliás, odeio estar num grupo que papeie alto em QUALQUER lugar, talvez mais ainda em casa, já que transeuntes são passageiros e vizinhos, não. "Ah, então você é uma orgulhosa que quer fugir de ser analisada, julgada." Nunca disse que não era; sou, ao menos, enormemente sensível a zombarias, invasões de privacidade e injustiças. É ser orgulhosa? possivelmente. Mas espero me perdoem essa falha em nome do desejo sincero de, além de não ser incomodada, na mesma proporção não incomodar ninguém.

O querer manter a desinvasão da intimidade e o anonimato da imagem a todo custo me torna inapta para o Instagram, para o YouTube, para toda carreira mais publicizável (a escrita, ainda que me impulsionasse a algum futuro, me permitiria um retiro sagrado) e até para a maternidade de crianças ou bichitos, visto que pequenos seres demandões não costumam estar familiarizados com a noção de espaço pessoal. Me admiro das constantes reclamações de pais e tutores humanos, aos risos: não consigo mais ir ao banheiro sozinha(o), não tomo mais banho sem que o Godofredinho – tenha lá o Godofredinho duas ou quatro patas – me siga até o chuveiro; e fico cá-comigomente: quê? não, isso não é para mim uma alternativa razoável. Desde eu criança que só me sinto bem em privacidade absoluta, não tendi nem por índole nem por criação a ser uma criatura amostrada, relaxada no partilhamento de espaços e emoções. Até hoje fujo ao estereótipo da mulher que vai ao banheiro de um restaurante, shopping etc. com outras mulheres; pra que isso? cada uma tem sua necessidade, seu tempo, seu ritmo, vai você, depois eu vou; não tenho a menorzinha intenção de aproveitar a "escapada" do grupo para conversar sobre nadíssima, só entro no banheiro para coisas de banheiro, todas da esfera in-di-vi-du-al. Nessa de "não me acompanhem", "não me aguardem", "me deixem", vê lá se eu prestaria minimamente como mãe – eu que só ambiciono voar sossegada, despercebida, isenta de interrupções, de pedidos, de chamamentos. Ainda bem que me conheço o bastante para saber que nem todos os amores são para todas as pessoas, e vice-versa.

Espero somente que as circunstâncias da pandemia – com todos os seus requeridos isolamentos e anonimáscaras – não tenham agravado demais em mim o vício de obscuridade galopante. Nada como um cúmulo de realidade torta, afinal, para fazer uma alminha já gauche acabar de se desencontrar.

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