terça-feira, 20 de abril de 2021

Um peixe transparente e um cabelo que bebe sol


De vez em vez me dou ao colorido desfrute de morar, um pouquinho, numa obra de arte não verbal; se nos hospedamos por dias, semanas, até meses dentro de universos escritos, por que não passar uma tarde ou tomar um café que seja nos pintados? Pois fui hoje fazer visita aniversária a Odilon Redon, pintor francês de produção fabulosíssima – um transbordamento doido que engloba Simbolismo, Romantismo, Realismo, Impressionismo, Pós-Impressionismo e creio que todo damn estilo que lhe tenha dado na telha – cujos 181 aninhos se completam neste 20 de abril. Foram 76 em vida e uma obra de boquiabrir qualquer mortal, tanto pela fartura quanto pelo conteúdo, capaz de povoar os pesadelos mais exigentes (O QUE SÃO seus olhos esbugalhado-voadores e suas aranhas sorridentes, meu Pai??), de acarinhar com flores e borboletas em delicadeza pastel, de escrachar cores vivíssimas e preto-branquices terrivelmente góticas e perfis de mulher serenos, suaves. Fácil não foi, entre mais de 400 portinhas, escolher uma para adentrar com um abraço de cortesia ao autor, mas enfim pulei seduzida para bordo dO barco misterioso (1892) que ilustra aqui o texto, e que tem potencial para dar à luz as lendas mais douradas.

Douradas, sim: vejam a lindeza de vela desse barco e me digam se não é um tecido especial movido a sol, não a vento, muito antes de a tecnologia de impulsão solar estar acessível à humanidade pós-mil-e-uma-nôitica. Porque a cena, sem dúvida, é daquelas dignas de Sheherazade; o casalzito que já se encontra sentadinho na embarcação que abordei diz chamar-se Hisham (ele) e Anisah (ela), dois queridões apreensivos que podem contar unicamente com seu Barco Misterioso para resgatar a filha Nathifa, sequestrada por um gênio apaixonado mauzão – e transformada por ele num grande peixe de transparência chocante, como punição por ela ter resistido a seus avanços e como garantia de que, quase invisível como está, não seja encontrada no oceano pelos pais aflitos. Mas não foi somente a beleza de Nathifa que fez o gênio fissurar na moça; o criaturo sente que há nela um qualquer poder e não sabe identificar qual é, nem ela o confessa. (Sssshhh, eu sei: o tal poder é que os cabelos de Nathifa bebem energia do sol e a absorvem de tal forma que, mesmo deixada em desalimento e cativeiro, a linda não definha um grama.) Foi pela tripla resistência da jovem – à sedução, à fome e às ameaças para revelar o segredo – que o salafrário se exasperou e condenou-a a vagar pelo mar sem poder ser vista pela família nem comunicar-se com ela.

Rá! que ingênuos os vilões; é CA-LA-RO que Nathifa, conhecendo seu poder já de longa data, preveniu-se. Como não saber que uns tais dotes capilares em algum momento chamariam atenções muito inconvidadas? Desde bem criança, a bela filha do casal embarcado foi cortando o cabelo e tecendo, cortando e tecendo, cada ano mais um bocadito; quando, aos dezesseis anos, finalmente achou de boa extensão e largura aquele pano espetacular, entregou-o aos pais para que o usassem nos prodígios que fossem necessários, caso ela (por algum contratempo que já intuía) não pudesse ajudá-los naquilo de que precisassem. Pois pronto, logo depois se deu o sequestro. Amigos da família descobriram o cativeiro de Nathifa, porém não se atreviam a chegar perto enquanto o bruto do gênio estivesse na área; vigiaram tudo em escondidice e viram quando o raptor saiu não com a jovem, mas com uma forma vaga, translúcida que ele jogou no mar, rindo como riem os vilões que acreditam ter atingido o cúmulo da vingança. Não tolos, os parças compreenderam que ali havia treta mágica – e, não tendo conseguido localizar por conta própria a transformoça, relataram tudo a Hisham e Anisah, que por sua vez são bem as cabeças de quem a filha puxou a sua; não era hora de usar o tecido bebedor de sol para ir ao resgate? era: eis que o tecido virou a vela que agora navega, navega, navega sem vento, e que é capaz de iluminar um gordo diâmetro com sua auriluz intensa (nunca uma vela fez tão completo jus ao nome), a única luz forte o bastante para mostrar as formas transparentes de Nathifa no meio de tantas, tão obscuras oceanidades.

A missão ainda não se completou, amados; quisera eu, aqui debruçada na tela e no barco, identificar um trechinho qualquer da jovem-do-cabelo-que-bebe-sol, na esperança de ver se há de bastar o encontro para quebrar o quebranto. Desconfio que sim; por direito, o amor que não se abandona volta ao estado de si mesmo, quando vem à tona.

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