sexta-feira, 23 de abril de 2021

Para sua consideração


Comovida aqui com uma dessas historinhas cotidianas que guardam o mundo e que foi postada pela manicure Ingrid Moura no perfil (facebooko) O Lado Bom das Coisas: "Minha cliente de [...] 13h30 desmarcou seu horário às 13h (por motivos de saúde). Mandou por um mototáxi um lanche de sua loja e 50 reais, em seguida um áudio se explicando, pedindo desculpas e avisando que dentro da sacola do lanche tinha 50 reais, que ela não achava justo eu ficar no prejuízo. Gente, eu fiquei muito feliz, não só pelo lanche e o dinheiro (que eu vou abater na unha dela), mas sim por saber que existem pessoas que valorizam nosso trabalho, que nos tratam com carinho. Que não veem em mim só a Ingrid que passa horas do seu dia sentada na mesa fazendo unhas, veem em mim uma profissional, que tem contas, compromissos [...]." Parece óbvio enxergar Ingrid como profissional, não é exatamente o que ela é? – reagiu minha ingenuidade ao primeiro golpe de leitura; mas na sequência dobrei o pensamento: claro, é o que ela é, só que especialmente no Brasil não é como todos a enxergam. Especialmente neste complicado Brasil do sabe-com-quem-está-falando, enxerga-se por tradição secular não o profissional, e sim a profissão, ou mais fielmente dizendo: a função, a posição, a obrigação. Se você passa horas do seu dia sentada na mesa fazendo unhas, subalterna ("raciocinam" os herdeiros emocionais e/ou patrimoniais dos velhos senhores de engenho), é a parte que lhe cabe neste estratifúndio; dê-se por feliz com condescendência e gorjeta, e não espere que fora daqui eu pense por mais de 20 segundos em sua existência.

Mas as pessoas que a gente aprecia topar no caminho – feito a cliente fofíssima de Ingrid – pensam justamente não no ofício, pensam na existência. Têm aquela coisa linda pelas circunstâncias da vida alheia a que chamamos genericamente de consideração, espécie de braço civil e republicano do amor: a habilidade empática de desinstrumentalizar as relações, descoisificar os contatos humanos, descoisificar os humanos em especial. Consideração é a etiqueta social não mecânica, a inteligência da polidez, a PhDice da civilidade, o plus da simples educação que já estava em contrato; não é uma questão de simpatia – se fosse, reinaria absoluta neste nosso império da cordialidade superficial e sorridente –, trata-se antes de um treinamento da atenção, de um exercício refletido. Combinemos que os brasileiros costumamos trabalhar muito mais no registro da simpatia do que no da empatia, esta gêmea-requisito da consideração: sorrimos, fazemos confidências ao cabeleireiro, abrimos a vida ao vizinho de metrô, damos um panetone Bauducco à empregada, rasgos de momento, de impulso e de baixo compromisso; projetarmos responsabilidade sobre as consequências de algo sobre alguém, no entanto, não costuma ser nosso forte, e tanto assim que a belíssima atitude da cliente de 13h30 virou post por seu caráter de exceção. Perdão se julgo mal de mim e de meus conterrâneos (tendo vivido no país desde o útero, infelizmente não creio que seja assim), mas sempre me pareceu que um nosso defeito crônico é nos modularmos em diapasão infantil – tanto no que há de mais repentinamente generoso quanto no que há de mais egoísta e menos ajuizado, prudente e previdente. Vamos admitir que exemplos de infantilidade chovem por aqui a cântaros, começando por "cima" (aliás, aquela criatura que mente, cabula obrigações e quer todos os brinquedos e atenções para si, que nem pirralho mal-educado da terceira série, jamais estaria "lá em cima" se não fosse a imaturidade cognitiva de boa parte do eleitorado, inapto até para ponderar que mamadeiras de piroca são mil vezes mais fantasiosas que todos os Coelhinhos e Noéis).

Consideração pelo outro é coisa de adulto, no mais humanamente aperfeiçoado sentido do termo. Consideração é coisa de gente que não se sente "passada para trás" ao pagar por um serviço do qual não pôde usufruir por motivos de força maior – afinal (reconhece), no bolso dos que normalmente têm recursos para pagar por manicure, faxina etc., a ausência dessa quantia tende a pesar menos do que no bolso de quem presta o serviço em questão. Consideração é coisa de gente que estimula muitissimamente seus funcionários a prosseguirem nos estudos, ainda que o expediente precise ser readaptado e ainda que, como consequência da maior capacitação, os mesmos funcionários venham a alçar outros voos. Consideração é coisa de gente que nem cogita descontar salário de quem está submetido a transporte público e por isso tem eventuais atrasos, ou nem por isso: pessoas não estão reduzidas às dimensões de seus empregos, enfrentam problemas com seus pais ou filhos doentes, estão sozinhas na supervisão do homeschooling, precisam discutir assuntos inadiáveis com seus adolescentes assoberbados de vida, só conseguem namorar os conjes de manhã, you name it; sério que um atraso ou outro vai impedir o trabalho de ser feito com eficiência? Consideração é coisa de gente que se antecipa a necessidades, compreende razões, está mais atenta a contextos reais do que a disciplinas imaginárias, está menos presa a vantagens pessoais do que a justiças coletivas, faz o possível para melhorar ambientes, distribuir oportunidades, abrir espaços, facilitar caminhos. Gente que, como disse Manoel de Barros no domínio da poesia, voa fora da asa: vive habituada a viver além de si e a não parar onde a maior parte das pocket gentilezas fica.

(Senhor: multiplica.)

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