terça-feira, 13 de abril de 2021

Em busca


Para sobrevivermos ao atual Brasil, precisamos andar agarraditos ao teor dumas palavras de Santo Agostinho: "Nada estará perdido enquanto estivermos em busca". Este inferno de Dante que atravessamos é só isso mesmo, uma estação, um atravessadouro; é daqueles quadros borrasquentos que vemos nos museus e que parecem aterrorizantes com sua tempestade cinza – mas que, lembremos, representam apenas um flash, uma polaroid da travessia; a travessia não acaba na tempestade, acaba no porto. "Ou no naufrágio." Nem no naufrágio, já que os náufragos dificilmente se conformam em afogar-se e tendem a flutuar sobre cada pedacinho que lhes resta. Nossa missão possível, se decidirmos aceitá-la (decidimos), é nos agrupar com o máximo de náufragos irmãos e sobre o máximo de pedacinhos resgatados: eis que, rebeldes e desobedientes ao que se quer impor como "destino", faremos nossa própria ilha de madeiras amarradas, nosso próprio continente de braços unidos, nosso país alternativo que não se dobra. Que não soçobra.

Nada, nada está perdido enquanto há gente insistindo: MSTs produzindo e colhendo, MTSTs cozinha-solidarizando-se, Teresas Cristinas fazendo lives de puro amor, Gilbertos Gis cantando "Volare" com a neta, deputados e senadores lutando por CPI e impeachment, voluntários doando sangue e alimento, profissionais da saúde levando vacina em barquinhos até os pacientes, cientistas prosseguindo com experiências, universitários realizando pesquisas, ambientalistas se recusando a desistir de preservações. Pessoas continuam gerando filhos, filmes, livros, continuam se apaixonando e se casando, continuam descobrindo talentos, montando álbuns, compondo músicas, debatendo questões, lendo para cegos, aprendendo LIBRAS, ensinando a cozinhar. Nada está normal – mas perdido também não está; nem pandemias nem fascismos são eternos, nem vírus nem fascistas resistem a tudo; nossa terra já aí estava muito antes e permanecerá por muito tempo depois. Eles passarão; nós passarinho.

Nós, a maioria, estamos em busca, não estamos quietos, embora talvez pareçamos. É apenas a necessidade de isolamento imposta pelos protocolos covídicos que nos afasta das ruas, ou do contrário seguiríamos por aí às hordas, indóceis de protesto. O que não fazemos nas ruas fazemos em família, nas lives, nas redes, nas janelas – insuficientemente, eu sei, porém o suficiente para assinalar a teimosia da busca, para não deixar dúvida de que estamos na área, atentos, tubarônicos, rondando as possibilidades e aguardando as brechas. Se procuramos brechas, se encontramos focos de luz entre as ruínas, é que a perda não se tornou nem se tornará efetiva: perdas se efetivam somente quando o lado vitimado cessa de querer e existir. Alguém aí nessa vibe? não mesmíssimo. Assim como o José de Drummond, a gente não morre, a gente é duro (em nossa versão coletiva, ao menos), a gente marcha ainda que sem o para-onde. Nosso para-onde somos, mutuamente, os uns e os outros.

Nada está perdido enquanto não nos perdermos de nós – os recíprocos faróis.

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