quinta-feira, 29 de abril de 2021

Papo reto


Ludwig Wittgenstein, cujos 70 anos de morte relembramos hoje redondinhos, declarou para minha alegria que "o que se pode dizer pode ser dito claramente; e aquilo de que não se pode falar tem de ficar no silêncio". Para minha alegria porque amo enormemente o conceito do papo reto, da confortável simplicidade de dizer as coisas como são em vez de embalá-las em burocracias e disfarces hipócritas. Note-se: NÃO significa atirar uma verdade feito pedrada – e, consequentemente, feito vingança –, sob a desculpinha também hipócrita de "ser verdade", ou pior, ser a "minha opinião", esse novo bezerro de ouro de nossos tempos. Papo-retice não implica rudeza, agressividade nem falta de educação, que continuam tão desliberadas como dantes entre as pessoas de convívio civilizado; implica, sim, uma saudável alforria com relação a terminologias deslizentas, eufemismos escorregadios, frufrus e entretantos, todavias e litotes (sabe litotes? aquela figurinha de linguagem ensaboada que nega para afirmar: "Euriclênia não era feia"). Implica um respiro na varanda do protocolo, uma linguagem em estado de coffee break, limpa, destabelada, destabulizada, eficiente, direta – nada mais que a verdade, so help me God.

Discursos com pegada jurídica, por (anti)exemplo; aqueles votos do STF, looooooooongos e obesos de rapapés e excelências, apenas para justificar um "sim" ou um "não". Que sins e nãos sejam justificados, claro, mas precisa um texto inacompanhável pela gorda maioria da população (eu, inclusive), como se para descobrirmos se vamos ou não poder votar no Lula tivéssemos de passar a noite inteira de smoking no Dolby Theatre, esperando a abertura do envelope? Falar em Lula, ah! que delícia ouvi-lo discorrer sobre qualquer assunto, ele sim praticante do papo sem papas, sem triquetriques: de um coração brasileiro para outros corações brasileiros, livre de escalas. O querido Guilherme Boulos é da mesma safra, dotado do mesmo discurso estrada-liso e isento de enrolações – sou absolutamente apaixonada por suas respostas mais translúcidas que o mar de Noronha –, assim como tem mostrado ser, fora da classe política, o mui articulado Felipe Neto, que não costuma refugar diante de nenhuminha pergunta e manda todas as reais com tranquilidade. Tranquilidade típica dos intelectualmente honestos (sempre eles, amores de my life): gente que baseia suas convicções em provas, que absorveu conteúdo suficiente para não precisar gastar com formas & performances um minuto da argumentação, e que basicamente não arrasta consigo o encosto das coisas a esconder. Coisas a esconder consomem excessivos terabytes comunicativos – taí o presidente eleito (embora não praticante) que não consegue encadear duas frases com coerência nem escutar uma perguntinha básica de repórter sem reagir com grosseria e dar tela azul.

Por sinal, tenho sentido uma falta feroz de repórteres e apresentadores serem muitíssimo mais faca só lâmina, faca nos dentes, vozes que entrevistem abrindo a ferida e que informem sem nenhuma cerimônia ou manto diáfano eciano: não é que cloroquina e ivermectina meramente "não tenham eficácia comprovada contra a covid", bora nomear os bovinos, elas REALMENTE NÃO FUNCIONAM e, se tomadas que nem balinha, MATAM (o "não ter eficácia comprovada" abre portas perigosas à interpretação de que "podem funcionar, o povo só não tem certeza", e mascara o risco ululante de hepatite medicamentosa; mais energia aí nessa notícia, pelamor!). Não é que o presidente haja declarado algo que "não é verdade": ele MENTIU. Não é "ligamos para o ministro Teodorílton, mas não obtivemos resposta": é "ligamos para o ministro Teodorílton, ele não quis falar conosco, porém independentemente de ele se pronunciar ou não nós já temos os dados, comprovados e apurados assim e assim". Pra que a palhaçada de "postou numa rede social" ou "esteve num shopping da Zona Sul" em vez de "postou no Facebook" e "esteve no Botafogo Praia Shopping"? Pra que a informação constantemente torta, enviesada, interminada, como se nas mais irrisórias coisas estivéssemos sob a vigilância dum Grande Irmão que só as permitisse suavizadas ou imprecisas?

"Talvez algo aí faça parte daquilo de que não se pode falar, segundo Wittgenstein." Não, não faz; absolutamente NADA que seja de interesse público, por mais lancinante o assunto, deve ficar no silêncio; pode-se, deve-se e necessita-se falar às claras sobre morte, doença, depressão, fome, fake news, milícia, fascismo, preconceito, necropolítica, empresas/empresários e seus posicionamentos cronicamente opostos aos interesses dos trabalhadores, cultura do estupro, golpe militar, custo das Forças Armadas para o país, taxação dos mais ricos, relacionamentos abusivos – pautas infinitas, convenhamos. Nenhuma necessidade de avançar sobre o que de fato pertence ao silêncio, ao menos o nosso: memórias, dores, alegrias 100% pessoais, íntimas e intransferíveis, no caso de seus legítimos donos não desejarem de modo algum transferi-las. Afeta a coletividade? falar é uma obrigação, e falar da maneira mais objetiva e democrática. Não afeta senão um ou poucos mais envolvidos, sem poder resultar em benefícios gerais de nenhuma ordem? falar é uma invasão, e não se fala mais nisso.

Não há nem deve haver esperança de fuga: palavra e silêncio são o inevitável compromisso.

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