quinta-feira, 15 de abril de 2021

De um azul inevitável

Eu bem queria gostar desse aniversariante de 178 anos, que aliás merecia toda a consideração e crédito por ser fã da escrita de George Sand e por ter abandonado o Direito para cair nos braços da literatura – duas senhoras cartas de recomendação. Tentei, juro, e nem tão pouco: li duas vezes A outra volta do parafuso, li Daisy Miller e alguns outros contos, então tudo bem, achei que podia com A taça de ouro. Não discuto seja uma obra-prima; mas quase morri, e reconheci que não, eu não gostava de Henry James, ficava no máximo entre ler com alguma indiferença e ler com desespero de tédio, por mais que admitisse sem problemas a genialidade do autor. Leiam Henry James vocês, queridos, continuem sem mim; façam-no feliz como eu não pude, já que nem todas as páginas são para todos os olhos, creio – e não é culpa de ninguém, somos apenas um match literário que não acendeu foguinho. Excellence does not require perfection, "a excelência não requer perfeição", palavras do próprio Henry: o fato de algo ou alguém não ser dotado de irretocabilidade, ou de não ser uma unanimidade de gosto (como é o caso do escritor graças à MINHA degeneração de gosto), não tira desse algo ou alguém a grandeza que lhe pertence solidamente e as homenagens que lhe são devidas; a excelência é uma realidade, a excelência se impõe, a excelência não é desmentida por quaisquer falhazinhas supostas ou reais, tanto quanto o céu não deixa de ser dum azul inevitável e muito acima de nuvens.

A frase de Henry James precisa ser balbuciada diariamente como mantra em várias línguas, precisa ser bordada como lema da bandeira a ser hasteada com – ou melhor, sem – largas solenidades nos domicílios dos perfeccionistas e ansiosos. A gente nããããão carece ficar de neura com cada milímetro abaixo da perfeição para ser excelente que chegue, excelente que é uma lindeza; a gente-revisor não pode se atormentar por causa de ponto final em itálico, a gente-professor não tem como dar conta de todos os recursos didáticos online, a gente-pintor iria enlouquecer se se cobrasse os traços dum Van Gogh (que provavelmente se cobrava os traços dum Rembrandt, que provavelmente se cobrava...), a gente-escritor surtaria em gênero-número-grau (surtar, sim, pode ser em grau) se se autodeterminasse as linhas dum Machado ou os versos dum Bilac, a gente-mãe-pai explodiria em moléculas de angústia se se exigisse a casa perfeita, a escola perfeita, a reação supernannymente perfeita, a resposta freudianamente perfeita, a alimentação sódio-calórico-vitamínico-proteico-organicamente perfeita. Fazer todo o necessário que se consegue, eis a pedrinha filosofal da excelência isenta de loucura: suprir as demandas com energia sincera, com o honesto empenho dos tão dispostos a aprender como serenos em errar; ir até o cúmulo, porém sem autoimolação mental; jogar-se com inteireza nas providências do que é urgente e, se sobrarem horas e calorias, nas urgências do próximo nível – desde que haja um stop muito claro no horizonte. Para uma excelência no viver, convém não se matar.

Compreendo totalmente que se busque a perfeição em âmbito moral, espiritual; adoraria tê-la; mas essa opera em outro registro, não é a ensandecida e inviável perfeição da matéria. São inclusive noções adversárias em algumas esquinas (ou em muitas avenidas), uma vez que aquele que vai se esmerando em sua face imaterial dificilmente considerará razoável que se gastem fortunas, por exemplo, em intervenções estéticas desnecessárias à saúde e só explicáveis pela gana do "corpo perfeito". Para a criatura que se especializa no aperfeiçoamento impalpável e independente de limitações físicas, financeiras, tecnológicas, cronológicas etc., a perfeição é uma via bem-vinda, e a excelência, uma sua estação; para quem se deseja top dos tops universais em termos de profissão, aparência e similarices bem deste mundo, entretanto, a excelência que deveria ser meta vira inimiga, e a meta mesma é depositada sobre uma miragem. Pior do que desfazer-se como miragem: o furor do objetivo irreal leva o iludido para tão longe do oásis de excelência possível, para um tão-além delirante, que frequentemente se torna impraticável retornar ao caminho seguro antes da morte pela sede.

Foco na água, queridos, e em como a distribuiremos, e no quanto é essencial partilhá-la; seja qual seja o peso, o prêmio, o traje, a cara, a conta, o título, o currículo com que venhamos a chegar até ela, só estaremos em excelentes condições se a dermos para o gasto.

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