segunda-feira, 5 de abril de 2021

Morrendo e aprendendo


Raras coisas são mais canalhas do que aquelas reportagens que pipocam sempre que a vida está impossível (desemprego, crise, preços exorbitantes; tipo agora) e metem uma Pollyanna que não é otimismo inocente nem papagaiada de resiliência – é deboche. Deboche não é certamente o que se deseja fazer, mas é o que acaba feito quando jornalistas desnocionados romantizam a precariedade e a transformam numa espécie de alternativa idílica aos hábitos grosseiros da abundância: o gás anda inacessível? volte ao fogão de lenha, a comida fica muito mais gostosa; a grana não chega para a gasolina? vá de bicicleta e transpire saúde; não dá pra carne, né? troque por ovo ou soja, altamente proteicos, inclusive confira as receitas topíssimas que colocamos no site; tá inviável estudar com essa internet porca? qual o quê, você consegue, veja aqui este guerreiro que faz as lições encarapitado no pé de manga, agradeça, inspire-se. Claro: o guerreiro que se encarapita na árvore para catar wi-fi, as trabalhadoras e trabalhadores que dão nó em pingo d'água para nutrir-se e deslocar-se do modo mais viável, esses são dignos dos olhares de maior aplauso, solidariedade, respeito, empatia; o absurdo mora nas câmeras e microfones que não focalizam o absurdo, ou que não o tratam como absurdo, preferindo exaltar o esmagado (e quase o esmagamento) sem questionar como se combate de fato aquilo que o esmaga.

Assim preambulo para precisamente falar do que NÃO se encaixa no preâmbulo, do que NÃO romantiza as perdas que ocorrem à revelia, mas, em lógica bem outra, valoriza os necessários êxodos, as necessárias rupturas. É própria da Páscoa (por 50 dias continuaremos em tempo de Páscoa) essa lógica bem outra, sublinhada pelo padre na celebração – virtual – de ontem com a tão surpreendente quanto óbvia frase: "Só ressuscita quem morre". Estava ele avalizando com isso os sofrimentos horrorosos de Jesus nas mãos de seus torturadores? Evidentemente não; aliás, o que mais se faz nas cerimônias da Semana Santa é denunciar o quanto homens poderosos, ditos da religião e da lei, se esmeram na vileza e na crueldade ao condenar um inocente que os incomoda. O muito explicado intento do padre era tomar a morte como algo metaforicamente compulsório para uma transformação essencial: não raramente, é preciso que um lado nosso morra em nós a fim de que a vida de alguma forma caminhe, se liberte, se transfigure. No campo da arte, é tema frequente; já assim de pronto me vêm à lembrança, ilustres e ilustrativos, os casos dO lago dos cisnes – a morte do cisne branco representa o livramento da princesa Odette – e de Harry Potter – o protagonista só consegue emancipar-se de seu arqui-inimigo depois que a parte "habitada" por este em sua identidade é destruída. Quem estiver de veneta para a busca há de achar outras mil narrativas em que se manifesta essa nossa premência do "morrer" parcial para o viver completo.

É muita vez urgente, por exemplo, cortar tentáculos do que era para ser amor, mas é veneno mental e físico; mutilar inclusive aquela nossa porção que ainda se agarra ao que nos assassina, que insiste em não constatar os abusos, que nega o evidente, que se estocolmiza por motivos de autoestima desidratada. É urgente proceder à remoção de um ambiente que nos empeçonha: o trabalho de rotina absolutamente tóxica, a convivência familiar que deprime e traumatiza, o condomínio transformado em arena de perseguições doentias, as aulas cursadas na faculdade que não combinam nadíssima com a carreira pedida pela vocação genuína, aquela tão longamente sufocada. É urgente decepar de nossos dias o veeeeelho rancor que já entrou em necrose (e quer nos infeccionar junto), o vício que nos engole aos bocados, o luto antigo de que sobraram apenas raiva e gangrena, a culpa que virou um godzilla ou uma assombração emocional em vez de ser adequadamente desinfetada com perdões e similares remédios. Não é questão, não são questões de jogar o jogo do contente e pintar arco-íris de energia pra deixar o caos fakemente cheio de alegria, como desejam aquelas reportagens de péssimo gosto; ao contrário: é questão de PEITAR da maneira possível o caos que nos devora, de enfrentar o que nos mata com os recursos ao nosso alcance – quando há recursos ao nosso alcance, e quando o que nos mata nos é ou está intrínseco.

Ainda uma vez e todos os dias: feliz Páscoa, amores. Que todos os seus inimigos internos sejam batidos, que todos os terminais para recepção da dor externa sejam desativados. Em adendo, que os abrace a certeza de que nada realmente se acaba na quarta ou na sexta-feira: é o domingo que tem sempre a última palavra.

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