sábado, 17 de abril de 2021

Belo belo belo


A lua está que é só um fiozinho, um pedacinho de unha. E é bela assim. A danada é bela de todas as formas, em todos os quartos: esse tiquitito de agora que parece desenho de criança, quase irreal de tão preciso no tracejado de luz; o engordar lento e pressuroso que nos faz todo dia levantar o nariz com esperanças de plenilúnio; a encarnação-rainha, cheia, íntegra, desabusada, extrema; até as situações de pálido emurchecimento, aqueles ares lânguidos de Dama das Camélias que se fina ultrarromanticamente ou de noiva que ainda não se revelou de sob o véu. A danada é bela quando em veneta de luar (quase) agressivo que adentra a cozinha, é bela quando em noites macbethianas de estranheza rosada, é beeeela quando supersized daquele jeito surreal-novelesco, é ainda bela quando mal está, mal se vê – sufocada num edredom de nuvens que a atenuam, dramática. Nosso satélite (privilegiados que somos) é a beleza mesma, a beleza em conserva, em estado de dicionário – ou de planetário; a Beleza maiúscula dos simbolistas, invariável a despeito de suas variações, constância única do que é mutável, fidelidade do que é fluido, do que é fluxo. Da lua veio nossa primeira lição de que o bonito, por atravessar fases, nem por isso se desbonita nunca.

O mar é também desses: deslumbrante em seu turquesa calmo de dia com sol, impressionante em seu cinza feroz de pós-chuva, denso e perfeito na azul-escuridão das horas geladas, soberbo no esparrame de espuma e nas mansidões de piscininha; ÍCONE. Da mesma forma as árvores, impávidas colossas em qualquer estação, com quaisquer tipos de folhagem e porte – enternecedoras como mudinhas, fascinantes como adultas, veneráveis como anciãs, estupendas se de um verde maciço, extraordinárias se róseo-vermelho-outonais, lindíssimas inteiramente nuas ou apenas folhinuas e florivestidas, lindíssimas eretas ou espalmadas, hipnóticas e líricas se cobertas de ramos chorões ou de echarpes de cipó. Não há árvore que não seja obra de arte (sacra) enraizada a céu aberto, museu vivo de harmonias múltiplas, estátua de botar Michelangelo em aviso prévio.

Mas nem só de belezumes in natura vivem os sentidos. Bibliotecas e livrarias, por exemplo, são colírias em todas as suas manifestações, desde o sebinho estendido num chão de rua até o Real Gabinete Português: livros juntos, muitos, disponíveis para o toque (e a posse eventual), com cheiro de tinta nova ou cheiro página-amarelo; livros de capa flamejantemente pensada para a sedução do comprador e livros de capa dura e ares de duque, vaidosos mesmo das próprias remasterizações de ruína. Outros belos eternos: cinemas – sublimíssimos até quando não passam dumas cadeiras e dum lençol estendido, espetaculares em suas velhas e queridas versões de rua, still grandiosos nas versões de shoppping (menos charmosas de pitoresco e mais capazes, entretanto, de projetar à altura as rocambolagens da ficção). Que a beleza, afinal, está no movimento necessário rumo ao cumpra-se, está lindamente nas metamorfoses encaradas a caminho de ser-se.

Beleza não é necessariamente o decidido e impresso. Beleza é o processo.

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