sexta-feira, 2 de abril de 2021

No limite

Fada-sensatamente até a última célula, reclamava ontem a queridíssima amiga Renata Esteves, no Facebook, de "quem faz pouco dos sentimentos dos outros. Quem diz que é palhaçada, show, frescura... seja lá o nome que for". Afinal, "a gente não sabe [...] quanto de sofrimento a pessoa já aguentou até desabar. O que dispara uma crise de choro, de ansiedade, de pânico, de raiva... muitas vezes é uma besteira. É a gota d'água. É o acúmulo de várias vivências e não aquela coisa boba que enxergamos como espectadores de uma vida que, na maioria das vezes, desconhecemos. Todo mundo tem direito a dar chilique. Todo mundo tem direito a ser respeitado quando precisa desabafar, seja como esse desabafo for. Ninguém morre por não emitir opinião sobre o sofrimento alheio. Mas muita gente morre por ter sido ridicularizada em seu sofrimento". Alguém me empresta as mãos, que eu estou aqui sem palmas suficientes para bater.

Tive a sorte de crescer em família amorosa, porém este particular me incomodou sempre muito: a sensação de não poder passar por uma explodidinha em grito, choro ou assemelhados, de vez em quando, sem que esse rompante fosse classificado como "fazer teatro", "dar show". Não sei se também por isso (não excluindo outros fatores óbvios, como a natural tendência à introversão) fui passando de um bebê e pós-bebê extremamente nervoso, chorão, histérico a uma criatura intensa e progressivamente sensível ao ridículo, até chegar a esta adulta 24-horasmente tensa de estar falando alto demais, chamando a atenção demais, sendo observada demais. Boto lágrimas com facilidade, mas com o máximo alcançável de discrição – só uma dor de quase-morte para me fazer verter soluços em público; olho sempre ao redor avaliando reações e julgamentos, relaxo exclusivamente em sozinhez; me vejo milmente mais à vontade para derramar ternura fora do núcleo familiar primário, onde, apesar de haver bastante amor, uma certa vergonha invencível me mantém em contenção. Talvez não seja tão herança dos primeiros tempos, talvez seja até mais do que imagino, talvez tenha germinado daí minha descompensada preferência pelos personagens mais carentes e mais tortos, que eu poderia cobrir de amor sem nenhuma economia (especialmente na ficção); seja como seja, sinto nas fronteiras d'alma o movimento simpático por esses que a amiga Renata descreveu, esses que irrompem em meltdown, que implodem dalguma angústia aparentemente intempestiva, mas em geral longamente cultivada. E não creio sequer que me identifique, já que a esta altura não me enxergo capaz ou mesmo necessitada de tais erupções (só quero que me deeeeeeixem em paz, por gentileza); acredito mais ter mesmo um fraco irresistível pela vulnerabilidade que se deixa ver sem defesas, sem hipocrisia. Um fraco pelos que se mostram fracos – nenhum alfa entojadinho tem, para mim, força maior.

Falar de alfas e pseudoalfas entojados, por sinal, me estala uma ocasião de esclarecimento: não respeito de modo algum chilique de opressor frustrado, piti de gente que não aprendeu a ser contrariada e se vomita em grosseria, violência, preconceito; a esses desprezo, como não poderia deixar de ser – no máximo tenho piedade de uma alma doente, às vezes até potencialmente boa, mas desviada por turbilhões do trajeto. Piedade é o que tem pra hoje, olhe lá. O roar dos oprimidos, dos perseguidos, dos escanteados, sim: esse me move e comove como é devido, a esse eu respeito por mais escandaloso e desenfreado que seja; há muito, muito dilaceramento, muito amargor já na borda dum coração que se arrebenta por causa de uma pergunta, um risinho, um esquecimento, um desenho no quadro-negro. Porque NÃO É uma pergunta – são todas as mãos pesadas da cobrança social e da discriminação velada querendo saber "e os namoradinhos?", "e as namoradinhas?", "e os bacurizinhos?", "credo, você curte isso?", "Fulanélson não reclama de você usar o cabelo tão curto?"; NÃO É um riso – é todo um looongo passado de risos mais ou menos explícitos, de olhares mais ou menos encarões, de expressões certamente condenantes da fala, da voz, da roupa, do gesto, do jeito; NÃO É um esquecimento – é um conjunto asfixiante de esforços solitários (da neomaternidade, por exemplo), de exaustões insuspeitas, subestimadas, incompreendidas, premiadas pela distração de alguém com quem se contava e com quem nunca se foi distraída; NÃO É um desenho no quadro-negro – é o septuagésimo oitavo episódio de bullying do dia, somado a piadinhas anônimas na aula, gelo social, isolamento, deboche do cabelo, do corpo, do sotaque. Não é UM: são todos, é tudo; tudo de cansativo que se viveu, tudo de chorado no travesseiro, de não contado aos pais por vergonha, de somatizado em questões de saúde, de engolido em silêncio, de ruminado na culpa que não sabe que não tem culpa, no engasgo doloroso da injustiça que nem sabe ainda definir injustiça. E ainda vem passivo-agressivozinho dizer que "âin, que doido, que desequilibrado, sua louca, histérica, não era pra tanto"?? Chama aí o Batman esquentando a cara do Robin na porrada, por gentileza.

Amigues que andam à beira dum ataque de nervos, bem-vindes sejam a meus braços; a pandemia não impede que eu lhes aplique um abraço beeeeeem apertadinhamente solidário em vontade e espírito. Notadamente no Brasil em que temos vivido, só posso mesmo chamar irmãos aos que, nem que seja da boca pra dentro, estão prestes a perder as estribeiras.

Nenhum comentário: