quarta-feira, 7 de abril de 2021

Quem não é mau também faz por mal

A esta altura, a maioria já viu a cena dilacerante de desabafo do professor João Luiz no último "jogo da discórdia" BBBista: João rompeu em choro após protestar, coração-partidamente, contra a atitude do co-hóspede Rodolffo, que dias antes havia comparado uma peruca de homem das cavernas com o cabelo do professor. A fala justissimamente indignada do brother puxou uma das sequências mais significativas de nossa TV (sim, EVER), pelo tanto que ilustrou da sociedade brasileira e de suas chagas incuradas; porque não foi apenas a tristeza de João que embargou todas as vozes e olhos minimamente sensíveis – foi também a reação de Rodolffo, chocante pela aparente invulnerabilidade ao conhecimento e à informação. Chocante, mas não direi que surpreendente. Tal qualzinho boa parte dos brasileiros "acostumados" a ser racistas "sem ter tido a intenção de magoar", o cantor não se reconhece racista, nem pareceu comover-se muito com a dor provocada, justamente por não tê-la compreendido. O enredo foi o de sempre nesses casos: imagina, eu jamais faria isso para te ferir, a peruca era mesmo um pouco parecida, meu pai tem o cabelo igualzinho ao seu, então eu iria atacar meu pai?, meu cabelo é crespo, está alisado, pessoal também me zoava de eu ter canela fina etc. etc. – toda aquela estrutura de defensiva que se afunda cada vez mais ao tentar justificar-se por meio de pseudoidentificações, como se a experiência de mundo (ou o que se declara como experiência de mundo) de alguém não negro pudesse ser comparada com a de uma pessoa negra. Apesar do imenso empenho da sister Camilla de Lucas em explicar longa, detalhada, serena, didaticamente a Rodolffo por que a postura deste tinha sido racista e por que NÃO era aceitável (aliás, fiquei extremamente fã dessa moça, cuja oratória espetacular eu nunca testemunhara por só acompanhar o programa pelos comentários de internet), o fato de o rapaz interrompê-la a todo instante, insistindo na história do pai e similares, deu a entender que a lição não avançou muito do ouvido para dentro. Minha esperança é que o ensino paciente de Camilla tenha encontrado alunos mais permeáveis aqui fora.

Não creio, naturalmente, que o brother confrontado seja má pessoa, tanto quanto não creio que a maior parcela do Brasil seja composta por más pessoas – ainda que o racismo configure, no país (quiçá no mundo), algo estrutural. Seria totalmente desesperador pensar que quase todos são horríveis; o próprio racista avoado costuma saber muito bem que racismo é horrível, e seu costumeiro impulso de negar que tenha feito alguma coisa por mal – conforme Rodolffo se esfalfou em jurar de várias formas – provavelmente equivale, na esfera psicológica, a fazer afirmação diferente: eu não sou mau. Ninguém que não tenha um desvio cerebral grave quer ser reconhecido como uma criatura ruim, visto que ninguém em sã consciência deseja ser rejeitado, isolado, cancelado. Entretanto, "não fiz por mal" e "não sou mau" são falas que, na verdade, NÃO se equivalem; a segunda pode (deve!) corresponder à realidade na maior parte das vezes; a primeira, muito menos do que gostaríamos de admitir.

Quem não é mau TAMBÉM faz por mal, mesmo que não de maneira inteiramente consciente e premeditada. Não tenho dúvida de que Rodolffo de fato não soltou a infelicíssima brincadeirinha com o intento de machucar João – por sinal, sequer PERCEBEU que o fizera até o professor mesmo declarar sua mágoa; nem as (in)diretas da cantora Ludmilla, no show para os brothers, parecem ter furado a bolha de distração do colega. Mas distração não significa inocência. Por acaso um pai congenitamente distraído que esqueça o bebê no carro não será condenado por abandono de incapaz e provável morte, embora não quisesse matar seu filho? "Ai, credo, aí não se compara" – sim, compara-se; o efeito de uma atitude racista sobre sua vítima pode até não acarretar o sufocamento do corpo como no caso do bebê, mas quem que tenha presenciado o desabamento emocional de João é capaz de duvidar de quantas outras submortes um abandono, uma negligência provoca em alguém? "Não exagere: o João não foi abandonado pelo Rodolffo." Foi sim. Não precisa ser filho, não precisa sequer ser conhecido; se cognitiva e psicologicamente adultos, temos todos uma responsabilidade tácita pelo outro, e o DEVER de não abandonarmos a vigilância sobre nós mesmos a fim de não lhe causarmos nenhum dano. Conforme a sister Camilla maravilhosamente explicou ao aluno arredio, é uma obrigação que se impõe tanto mais quanto maior se torna nosso acesso à informação, nosso contato com um mundo cada vez mais esclarecido e debatedor de situações de preconceito. Se ele-Rodolffo (muito e muito insistiu ela) tem totais condições de se instruir e atualizar a respeito da percepção do outro, da percepção do que as frequentes vítimas de racismo vivem e sentem, simplesmente NÃO HÁ DESCULPA para não se comprometer com a própria melhora.

Sabem a velha máxima homem-arânhica de que, com grandes poderes, vêm grandes responsabilidades? pois então. Quem se encontra vivo, lúcido, satisfatoriamente educado e usuário de mídias sociais, neste justinho momento, se encontra diplomado em poderes bem suficientões para alçar o pensamento em fortes escaladas. Está-se condicionado ao que se possui e sabe: dispor de todos os equipamentos de proteção, das instruções de como usá-los e ainda assim dar-lhes as costas, atirando-se às cegas no vazio, NÃO é "tadinho dele" case, não é fatalidade – é escolha. É leviandade. Desconsideração. Omissão. Negligência. É, sim, por mal e para o mal próprio ou alheio; alguém necessariamente se machuca quando existe deliberação em ignorar as redes.

E quando os ouvidos têm paredes.

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