domingo, 11 de abril de 2021

A neutralidade é um roubo


Detergentes podem ser neutros. Sabonetes podem ser neutros. Pronomes podem ser neutros.

Posições políticas não podem ser neutras.

"Mas ninguém é obrigado a se posicionar." Obrigado não é; não se posicionar, porém, já é estar se posicionando – muda e eloquentemente. A não ser que se esteja sob situação arrepiante de risco à própria vida, a não ser que se esteja sob o mesmo grau de pavor e dominação das vítimas a que quereria proteger, constatar o horror e não denunciá-lo nem fazer o possível para impedi-lo significa dar-lhe uma bênção tácita. É inviável fugir aqui ao clichê de citar Desmond Tutu, que foi tão preciso: "Se você é neutro em situações de injustiça, você escolhe o lado do opressor". Simples.

OK, a vida é menos simples; mil marionetagens de persuasão, mil enredamentos de soft e hard power, milmilhões de sutilezas e durezas, de evidentes e capciosas violências embaralham pés, mãos, cérebros de quem acaba se eximindo de reagir. Pessoas são convenientemente desviadas de fontes de conhecimento libertadoras, levadas a demonizar professores e demais pensadores que "só agitam", encorajadas a focar na lida do mundo cão como um empreendimento individual, naquela base: "Quando o jeito é se virar,/ cada um trata de si,/ irmão desconhece irmão". E aí? gente carente, dependente e ignorante, na mão de seu opressor geral ou particular, dificilmente será vendaval; dificilmente incorporará a tempestade contra aqueles que a condicionaram por anos ao medo, ao preconceito, ao silêncio, ao não-se-mete, ao fica-na-tua. Só que nem todo mundo é gente carente, (100%) dependente e (de maneira até certo ponto justificável) ignorante. Sobram, também, aqueles que – como a vida do eu lírico de Bandeira – poderiam ter sido e que não foram, ou não são: os que têm sim plenas condições de informar-se, de criar opiniões embasadas, de reconhecer e desmontar falácias, de exercer e aplicar o conhecimento disponível, e no entanto seguem suas vidinhas fazendo a pêssega, imitando o avestruz proverbial. Principalmente da parte destes, a pretensão de neutralidade é um assalto à coerência histórica; NADA, em absoluto, justifica o amarelamento intelectual de quem dispõe de todos os instrumentos para a peleja.

A neutralidade (dos conscientes em potencial) é um roubo, um insulto, uma covardia, uma – vou usar aqui porque não é todo dia que se pode meter o termo numa conversa – ignomínia. Se a internet pré-5G está ali bonitinha para todos os escarafunchamentos e fact checkings, não abrir a boca contra fake news é um tapa em tudo que os personagens caluniados fizeram pela dignidade humana. Se a escola ficou aaaanos martelando em estratégias de leitura, interpretação de texto e argumentação, bancar o analfabeto político e social é uma cusparada no dinheiro dos próprios pais (fosse ele para a mensalidade do ensino privado, fosse para os impostos direcionados à rede pública). Se livros, revistas, filmes, vídeos, séries, canções, programas, documentários estão ao alcance imediato de olhos e ouvidos, trancar ouvidos e olhos para a realidade do outro é um escarro sobre suas dores expostas, um escárnio dirigido a séculos de denúncia artística e jornalística de todos os sofreres. Se há os meios, as condições e os instrumentos para SABER que existem explorados e exploradores, não se posicionar explicitamente em favor dos primeiros significa endossar a ação dos segundos; não votar diretamente em quem favorece os primeiros configura empurrá-los mais para a voragem carnívora dos segundos. Pouco importa se voto nulo e voto branco são possibilidades legais: restringir o voto por gênero e renda também já foi uma possibilidade legal, e nem por isso moral. Quem não atirou numa vítima, mas a encontrou e a abandonou à morte certa, deixou de ser culpado? quem é um nadador capaz, porém não deu sequer uma braçada para socorrer alguém que se afogava a dois metros de distância, por acaso não foi assassino, apesar de não ter empurrado a cabeça do outro na água? A negligência é um crime silencioso, a indiferença é uma assinatura na linha pontilhada da tragédia. Não se pode espoliar um infeliz de seus últimos recursos – e acontece, eventualmente, de esse recurso sermos nós.

A omissão faz o ladrão.

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