quinta-feira, 20 de maio de 2021

O que é que a bondade tem


Amo que Mark Twain tenha dito algo como: "Faça sempre o bem; isso contentará algumas pessoas e deixará as demais perplexas". Um plano absolutamente perfeito, já que dá conta às maravilhas tanto de trazer orgulho e admiração às pessoinhas amadas quanto de semear horror e confusão entre os eventuais desafetos – e o melhor do melhor: sem que seja necessário sujar minimamente as mãos (sendo necessário, aliás, o exato oposto). Agrada-se a si próprio e aos seus próprios, espalha-se uma camada de amparos e mercês pelo mundo e, de brinde, ainda se deixam brutalmente irritados todos a quem de preferência se deve irritar sempre, por serem irritáveis com o bem; vejam que negoção.

Como se não fora o bastante, sobram empurrõezinhos para a bondade na boa e velha linha "estudos dizem": estudos dizem (podem checar aqui o que eu resumo adiante) que os doadores, no doar(-se), ativam o sistema de recompensa no cérebro e liberam a almofadada dopamina, além de beliscarem o córtex subgenual e a área septal, ligados a apego e pertença. Segundo a Universidade de Michigan, a taxa de mortalidade tende a cair entre praticantes de serviço voluntário genuinamente abnegados; o International journal of behavioral medicine, por sua vez, aponta que os generosos se sentem no geral mais fortes e com mais energia; já uma pesquisa canadense mostra que "pequenos atos de bondade ajudam a melhorar quadros de ansiedade social". Mais confiança, mais laços, mais autoestima – não fica pedra sob pedra no organismo varinha-de-condado pela alegria azul de ser útil, de assentar uma pecinha de porcelanato que seja para pavimentar bem-aventuranças. Isso mesmo desespera os que não se inclinam para distribuições de renda e justiças afins, e que se agarram num triste espelho-espelho-meu incapaz de lhes mostrar rostos, peitos, peles, olhos, cabelos iluminados por dentro; estilos de vida egoistizados, enrolados em concha, podem providenciar os melhores cirurgiões, os melhores coiffeurs, os melhores cremes, mas decididamente não o viço vindo da satisfação mais subterrânea.

Gente que se acostumou a desdobrar-se em caridades – não ruidosas, e não obrigatoriamente financeiras – parece que engoliu um ring light desses que clareiam as chamadas de vídeo, ou antes: parece que anda por aí com auréola embutida e implícita. Não é que essas criaturas tenham o desapego dos ermitões ou caminhem sobre sua nuvenzita portátil, simplesmente conseguiram imergir na inteireza do que somos, na (quase) óbvia orientação de coletividade para a qual fomos feitos; e, uma vez imersas, permanecem como que sob um batismo irremovível de consciência, atado tanto ao senso quanto às doçuras do dever. Em palavras outras, os que fazem o bem não mais se veem aptos a deixar de fazê-lo: absorveram-no, permitiram-se absorver por ele e incorporaram, como consequência, uma lampadazinha invisível de calma felicidade – a calma, descansada felicidade de quem se cumpre.

A pulsão do bem inviabiliza e invisibiliza qualquer maquiagem que não seja eterna. Quem ama o cuidado alheio, infinito lhe parece.

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