terça-feira, 18 de maio de 2021

Cores que não vêm nos dicionários


Em seu textinho "Da cor", o fofílton Mario Quintana diz que "há uma cor que não vem nos dicionários. É essa indefinível cor que têm todos os retratos, os figurinos da última estação, a voz das velhas damas, os primeiros sapatos, certas tabuletas, certas ruazinhas laterais: – a cor do tempo..." Sem dúvida; eu só adendaria "todos os retratos impressos", já que o bom Quintana não poderia saber então que um dia a maior parte das fotos estaria cristalizada jovem e virtual, quase eternamente fresca. O conceito "cor que não vem", "cor que não há", de qualquer modo, é daquelas vias fascinantes que somente poderiam ter sido aradas por poetas, e não creio que o querido autor de bochechas molinhas (sou doida por apertar as bochechas do Quintana, vocês não?) viesse a se amofinar de eu andar semeando nessa via lavrada. De maneira que me arrisco a ensaiar outras cores que, acredito, nenhuma pantoneria já desenrolou sob os céus:

A cor da temperatura que vai mudando, do ventinho de varanda que vai pegando de clarear para o branco ou o azul, ele que era amarelado de verão e se torna uma lâmina de acrílico bulindo na pele.

A cor dos olhos da criatura amada – que nunca é uma só, fixa, redonda; é sempre uma paleta inteira, e sempre variante nas imediações do verde e do mel quando vem o sol.

A cor das ruas com árvores de frutas adocicadas, que adocicam todo o pensamento quando a calçada se cobre de restos enjoativos, maduros; são ruas brônzeas, amarronzadas, desse justo tom de madureza olorosa.

A cor da música, parente dos matizes da noite: mais roxa para o rock, mais grená para latinidades, mais lilás para popices.

A cor do cheiro da madeira, mais louro que a madeira mesma.

A cor das esperas, dum bege árido e monótono.

A cor das várias cidades quando resumidas num abraço da memória: o cinza-atijolado de Londres, o areal-com-floreira de Paris, o andaime-LED-starbucks de Nova York, as nuanças rosamarelas de Roma, o círculo de cores primárias de Lisboa.

A cor dos textos que nos compuseram e que apaixonadamente tateamos – mistura do pretobranco das páginas com a tinta interior das impressões de momento.

A cor dos filmes amados. Os de vocês não sei, mas os meus tendem constantemente aos vermelhos aveludados entremeados de viço turquesa, e algumas penumbras.

A cor dos primeiros dias de qualquer coisa, em geral claros, estridentes, de natureza nervosa.

A cor dos encerramentos, já estes escuros e às vezes salpicados de incenso, rosa, renda.

A cor do sempre: dourada, enleadora, como uma camada de âmbar que cobre a lembrança onde ela está.

E não descolorirá.

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