sexta-feira, 14 de maio de 2021

Esta alma apaixonada que não te escreve


De vez em quando vou brincar (virtualmente, é claro; alô, rinite!) entre jornalices velhas, realmente velhas, velhas o suficiente para serem de há um século ou mais, só pela curiosidade purinha de visitar o que éramos – rir um pouco, me horrorizar e consternar um pouco. Folheei agora a carioca Revista da Semana de 14 de maio de 1921, cem anos redondos e de bainha feita, portanto; e notícias do grande-mundo para lá, opiniões absurdas para cá, me diverti horrores (HORRORES é definitivamente o termo) ao deparar com o concurso "A declaração de amor". Uma pérola. Reproduzo aqui a proposta e mostro o pau, I mean, o link, para verdes que não vos minto:

"AOS HOMENS:

– Como declararíeis o vosso amor numa carta de vinte linhas, no máximo?

ÀS MULHERES:

– Como responderíeis, numa carta de vinte linhas, no máximo, a uma declaração de amor?"

E seguem as demais normas, entre as quais a obrigação de os textos "não conterem expressões impróprias da compostura moral desta Revista" (get a room, guys!). Interessantíssimo o fato de apenas os gajos estarem no grupo dos que se declaram, e apenas as donzelas se encontrarem na situação esperadora de quem responde – ah! nossos ancestrais limitaditos –; de qualquer forma, as leitoras da época não pareciam muito encantadas com a perspectiva de reagir às chorumelas dos moçoilos, a julgar ao menos pela edição lida, em que, de doze cartas publicadas, nenhuminhazinha nascera de pulso feminino. Observar as dos rapazes explica fartamente a resistência das moças, e sugere que – como dizem – Álvaro de Campos nunca há de ter passado frio, já que esteve sempre coberto de razão. Uma pequena amostra do mico coletivo (com grafias atualizadas):

"Esta alma apaixonada que te escreve chora neste momento, presa nos tentáculos da Incerteza! [...] Diante de ti, todo o meu ser se dobra num êxtase perene de submissão! Dize o que desejas de mim! E eu serei valoroso, serei herói, serei mesmo covarde, só para alcançar a glória do teu amor, só para admirar um sorriso da tua boca formosa!" (De Pedro para Olga, a sempre bela!, assim mesmo com exclamação.)

"Se sabes o que é este sentimento divino que nasce de repente – de um olhar que se fita em nós, de um sorriso que nos inebria – e que se chama amor, não preciso de vinte linhas para to manifestar aqui. Porque o amor não se declara, – revela-se; e por isso não se define, – sente-se; não se descreve, – cala-se." (De Zizi, esse enrolão safado que mandou caô sem-vergonhento a fim de justificar a falta de assunto, para Edelsuíta C. Força aí, Edelsuíta.)

"Estás disposta a ouvir-me? Queres que eu te exponha, palavra por palavra, pranto por pranto, todo o doloroso poema que vive em mim, desde que te vi? Dize se queres! Dize se tens coragem! Pois para ouvir um coração que ama, é necessário não temer a dor! [...] Escolhe, pois: ver-me feliz, bendizendo a vida, glorificando o mundo, meus olhos fitos nos teus olhos, ou ver-me infeliz, maldito, torturado, com mil agulhas de aço a pungir-me a alma, a ânsia inenarrável de chorar e não poder chorar, e com a vontade de terminar meus dias e não ter coragem para tanto, porque não me é possível perder o teu amor... e deixar-te viver!" (De Carlos, claramente um psicopata narcisista manipulador potencial serial killer, a... meu amor, minha glória, minha vida!, assim mesmo com exclamação AND reticências. Vade retro.)

"Sabes, acaso, o que significa uma corda de violino tremendo de madrugada? [Em 1921 eu não sei; em 2021, significaria vizinhos beeeeem aborrecidos.] É um coração magoado que soluça, chora, geme, uma alma apaixonada que canta." (De Osíris para Regina.)

"Desgraçada é esta minha vida de te amar tanto sentindo no coração o teu amor pela confissão do teu olhar e ter de viver longe de ti só porque o teu nome é inimigo do meu! Yvonne, ouve-me. Eu renego o meu nome, renego tudo neste mundo e só imploro o céu do teu amor, o doce encanto do teu beijo, a luz bendita do teu olhar..." (De Luís D., plagiando DESCARADAMENTE o Romeu do velho William, para Yvonne.)

"O Amor, esse pequenino deus, filho dileto de Vênus, impenitente, travesso, acaba de fazer sangrar o meu já dolorido coração. Fui atingido em cheio e a dor que senti foi por tal modo aguda e violenta que quase perco a noção das cousas." (Bem se vê, José R. – que enchia o saco de uma Senhorinha.)

Veem? não é implicância, gente, é crise supurante de cafonice que faz sangrar o meu já dolorido coração, com a ânsia inenarrável de gargalhar e não poder gargalhar a plenos pulmões de madrugada, sob pena de ser expulsa do prédio. Tudo bem que o dito concurso cultural se deu há cem aninhos; mas CÉUS. Alguém podia de fato acreditar num amor assim tão medido, de linguagem tão cheia de andaimes, tão nua nos seus óbvios protocolos e carimbos de apaixonamento – ainda que fossem realmente fictícios alguns ou vários desses crushes? Alguém podia crer numa paixão tão em posse de si, janota e primo-basília, vervelescente em seu aparente desespero, abundantemente artística em plena crise de pavor à rejeição, em plena hora de ser muda?

Que os promotores e os participantes do certame me perdoem, mas a mudez do amor é fundamental. A mudez, o tremor gelado, o pânico de articular duas sílabas minimamente sensatas, a gagueira mesmo na tela ou no papel: nada mais adorável e legítimo em termos de gente que anda possuída de amor, dominada de amor, habitada de amor em todos os cômodos, sem quase nem um quartinho de seu. O verdadeiro apaixonado dá anos de vida por ser entendido sem carecer de fala – até fala escrita, visto que mandar mensagem cria também uma febre louca de aguardar resposta. O verdadeiro apaixonado tudo faz para ter a resposta sem enviar pergunta, ou sem verbalizar pergunta; não sendo viável (dificilmente um entendimento apalavrado tem como ser evitado de todo), engasga-se miseravelmente com o medo de empreender O Diálogo, e implora com o dilatar indefectível das pupilas que algum sinal de aceitação o resgate da tortura. Sobre isso não sei a opinião de meus pares; eu, porém, acho duma beleza irresistível esse jeito de abandonar toda esperança, ó vós que entrais no inferno íntimo das declarações de amor: o autoabandono da insegurança é o que há de mais fino e mais doce, mais potente na homenagem e mais acolhível nos braços, caso o bem-querer seja evidentemente correspondido. Se não o tiver sido até então, já sai da empreitada com meio caminho andado.

Ridículos, mesmo, são os de palavras muito fartas, quando o amor só-ele vale todas as cartas.

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