domingo, 9 de maio de 2021

Senti firmeza


Temos hoje século redondinho do nascimento de uma heroína: Sophie Scholl, jovem integrante do grupo de resistência antinazista conhecido como Rosa Branca. Com 22 aninhos incompletos, Sophie foi presa ao lado do irmão Hans e de outro universitário enquanto espalhava panfletos oposicionistas na Universidade de Munique; apenas quatro dias se passaram entre a prisão dos jovens e sua execução na guilhotina. Era um fenômeno de coragem, a guria, que com seus verdíssimos anos mandou recado digno de ser pendurado como letra escarlate no pescoço duns cinquentões, sessentões, setentões que cá conhecemos, e que atualmente devem estar andando por aí com a fralda do pânico ante a necessidade de assumir seus feitos: "É a abordagem reducionista da vida: se você a mantiver pequena, a manterá sob controle. Se você não fizer barulho, o bicho-papão não o encontrará. Mas é tudo uma ilusão, porque elas morrem também, aquelas pessoas que enrolam seus espíritos em pequenas bolinhas para estarem seguras".

Sim, elas morrem também. As pessoas que mutilam suas convicções e alugam seus brios diante da garantia (ilusória, por sinal, já que o nazista de hoje é o nurembergado de amanhã), diante da promessa de terem os bolsos cheios e os pescoços preservados – morrem também. Os que arrendam o pouso de sua assinatura sobre documentos infectos, os que deitam à noite sob o peso da cumplicidade em mortes evitáveis, os que apertam com a mão nua a mão dos assassinos, os que aceitam salário da mão dos assassinos (salário para endosso de assassinato, evidentemente, não para lavar roupa ou fazer faxina), os que se submetem de olhos cerrados à colonização ou à curra psicológica dos tiranos, os que trancam no quartinho qualquer resto de nobre indignação para não melindrar o fragilíssimo ego dos monstros – morrem também. Pior: morrem feio, morrem vergonhoso, morrem infamado, morrem rude. E, ao contrário dos leais que resistem, morrem definitivamente.

Não defendo que ninguém seja temerário, é óbvio; não sou eu mesma nem um pouco temerária, no sentido de não desperdiçar segurança pessoal com quaisquer factoides sem efeito prático. Sustentar uma posição firme e abertamente não significa deitar-se por vontade própria sob a lâmina da guilhotina – nossos adversários políticos não são nossos credores, para que tenhamos com eles a dívida de honra de nos entregar a suas ruindades –, e aliás significa muito alegremente o contrário: viver o máximo possível, para honra e glória da irritação mais espumenta dos fascistas em questão. Mas nenhum ato de autopreservação e prudência envolve sequer a sombra de "negociação" com o horror. Há uma, só uma cara a ser mostrada aos que por acaso a olharem, nenhuma outra portável e suportável, nenhuma outra vestível; unicamente na plena nudez do que somos é que andamos decentes.

Onde a acessível segurança no mundo? Dentro. De fora não se espere muito, a coisa è mobile, olhares nos estapinham hoje e nos estapeiam amanhã; dentro é que podemos morar na solidez fofinha de nos saber parte de ideias que nos superam – que não nos pertencem, mas às quais pertencemos. A "desvantagem" é que não podemos vergá-las segundo nossa conveniência, a vantagem é que não o desejamos: integrar um projeto de coletividade traz como bônus as doçuras conhecidas de cada gota que se esquece numa grandeza oceânica, que ali tranquilamente se dissolve, pacífica, apaziguada, residente. Sua identidade, longe de apagar-se, amplia-se – quem era um se agiganta em todos, e passa a morar no sempre quem era meríssimo por enquanto.

Tem jeito não, companheiro: só sendo parte é que se é inteiro.

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