domingo, 16 de maio de 2021

366 dias


Pela primeira vez desde que o Lugarzito botou a carinha no sol, nos idos de 2011, estive aqui presente num pacotão de 366 dias seguidos (porque ainda por cima arranjei de retornar ao blog em situação bissexta – culpa do ano em que calhou a pandemia. Esse dia a mais num ano pandêmico, por sinal, a gente devia poder guardar para render juros após o pesadelo, hein? hein? só acho). Não vou dizer que foi um negócio trabalhento, vou dizer que tem sido, na esperança de que as forças de escrita continuem a andar nem que seja mancando; mas direito de queixa, convenhamos, não tenho nenhunzinho, já que ninguém me obriga a digitar sandices diárias, ninguém solicita o serviço de ser por mim aporrinhado. Mui principalmente: as chateações mentais que este pequeno filho opcional me possa dar não chegam à poeira de 0,000000000023% dos problemas reais de gente que vem cruzando a pandemia sob dúvidas orgânicas, incertezas de moradia e sustento, carências de cuidados de si, dos pais, dos filhos. Seria piada de pessissíssimo gosto "reclamar" de cansaço verbal ou assemelhâncias. Relatar sem peso dramático, no entanto, eu posso; posso confirmar objetivamente que sim, o processo é cansativo e facilmente caível numa rotina nada saudável, uma vez que 24 horas escorregam num tlect! dos dedos e SEMPRE está no momento de outro texto ser pensado. Não é queixa, é a constatação de que não há atividade – mesmo desobrigatória, lúdica – que a gente não consiga tensionar ou ver tensionada nas mãozinhas buliçosas do tempo, permanentemente amassadoras, rasgadoras, inquietas. Em permanente desassossego.

"Você não deveria postar todo dia, sua louca." Concordo, não deveria, e entretanto posto por não ter a tranquilidade disciplinada de não fazê-lo: se de 48 ou 72 horas fosse o prazo, talvez que eu ficasse mais luxenta na escolha do assunto e parasse de entulhar o blog com qualquer sucatazinha tropeçada na timeline, qualquer fiapo de ocorrência recolhida porque pode servir para alguma coisa – e então não me veria liberta, pelo álibi da urgência, do compromisso de ser clara, organizada, razoável, minimamente coesa e não repetitiva a cada texto. Saber que cada texto nasce e não dura mais que um dia, como o sol de Gregório (o de Matos, não o Duvivier), faz a fila autoempurrar-se; tudo serve, tudo é bem-vindo, tudo foi feito como deu para ser feito, se não saiu a contento paciência, daqui a pouquinho reinicia-se o Dia da Marmota. Além do mais, é jeito de me deixarem em paz na oficina – de eu me deixar, inclusive: todos os meus próximos estão cientes dessa batida virtual de ponto e não estranham que eu mergulhe no computador em momentos aleatórios, nem contestam o fato de que esse expediente SERÁ tão comprido e cumprido quanto o outro, o oficial e remunerado. É como é, acabou-se, já está institucionalizado como coprioridade ainda que não me renda nem uma moedinha. O cronômetro das 24 horas beeeeerra – e se impõe.

Escrever um troço qualquer todo dia torna compulsória a leitura de poemas, de definições, de pinturas, de flores, de filmes, de notícias, de curiosidades, de memes, de memórias; nenhumas férias são possíveis em termos de desencavucar partículas interessantes de mundo, feito aquele povo que anda com detector de metais nas praias, nos parques, nos jardins vestido da esperança de localizar umas tesourices. Imagino seja mais ou menos assim o ofício do fotógrafo, que se atribui a necessidade de enxergar entre: o meio do movimento, a joaninha na interseção das folhas, a metade do rosto, as cenas de corredor, a semiaurora, o semicrepúsculo, os bastidores do evento que lhe servem de comentário. Assuntos redondos, inteiros, fotografados de proa e com sol da manhã, nem sempre rendem ou interessam; é geralmente num close, num nicho, numa fratura do tema que habita o fio a ser desenrolado e trazido ao tricô. Sabem? me ocorre que essa teima de passear cotidianamente nos entrelugares (o provável nome mais fiel do blog havia de ser Entrelugarzito) tem muito parentesco com meu amor centenário, milenar pelas passagens secretas; não podendo residir num imóvel de há oito séculos cheirando a pedra e limo, com manuscritos baphônicos espalhados pelas gavetas e livros que acionam cômodos ocultos atrás da estante, eu vou que nem doida achando compartimentos de castelo em histórias da Wikipédia, inventando vidas mágicas em cima de telas, imaginando tretas pensadas e vividas com base em declarações de outros tempos, catucando as dobraduras da alma humana pelo que ela deixa adivinhar em seus flagrantes. Não tenho como saber how-longamente continuarei neste enredo e desenredo tecido em linhas diárias, mas suspeito não hei de andar nunca, nunca fora das entrelinhas; estou, parece, fadada à curva, ao canto, ao escaninho, à sinuosidade, à alternativa, à vereda, ao ponto cego.

Em permanente desassossego.

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