domingo, 30 de maio de 2021

Uma parte muito estranha de mim


Li um tweet bem de repentemente intrigante que confessava: "uma parte muito estranha de mim me diz pra eu fazer cinema". Não creio fazer cinema seja algo tão dizível por uma parte muito estranha – não tanto quanto, por exemplo, escrever um romance protagonizado por um ornitorrinco, cobrir a casa inteira de fita crepe, atravessar a nado e sem antibióticos a Baía de Guanabara –, mas enfim que sei eu da vida de quem tuitou essa estranheza? Pode ser alguém que tem há 46 anos um bem-sucedido consultório odontológico, ou uma criança de 11 que deveria estar preocupada apenas com o primeiro crush e as últimas tarefas do Google Classroom. Ou uma soldado que escreve seu diário em meio a uma zona de guerra. Ou um monge. Para muitos possíveis alguéns, "fazer cinema" é da ordem do impossível, do estapafúrdio e gratuito ao menos, e integra o processo de eu-heinização da vida. O que eu-heinizaria a vossa vida, amados – o que é que só aquele lado randômico da personalidade seria, gaiato, capaz de sugerir?

A mim, uma parte muito estranha já disse para cursar Artes Cênicas (relevem, eu tinha 13, 14 anos e amava folhear o Guia do estudante em busca de carreiras). Uma parte minha muito estranha disse para plantar um jasmineiro que tende para enorme numa varanda minúscula (não minúscula, mas excessivamente esbelta, digamos. E não, não plantei – ainda – nenhum jasmineiro). Uma parte muito estranha de mim já escolheu nomes de filhos que na verdade nunca pretendeu ter. Já passou horas de adolescência planejando abrir, na idade adulta, uma escola diferentona. Já passou outras horas de adolescência desenhando futuros vestidos de formatura, casamento etc. inspirados em trajes da Saori nos Cavaleiros do Zodíaco. Já assistiu a várias temporadas dO aprendiz e GOSTOU daquela bosta (aaaaaaaaaargh!, por sinal, com relação a todos os seus apresentadores). Já conviveu em boa amizade com pessoas que hoje, definitivamente: NÃO. Já detestou sopa e teve medo de montanha-russa. Já habitou all-day-longs sobre a bicicleta ergométrica, querendo o pior padrão da pior maneira. Talvez – embora sem nunca, nunca mais a resignação ao sacrifício – ainda queira.

Uma parte muito estranha de mim soooofre ao escutar quase qualquer música, pela propensão odienta de gravá-la tão a fundo que todo o fundamental silêncio interno se vai, já que o som inconvidado toca dia e noite, feito assombração, à sua revelia. Uma parte muito estranha de mim meio que acompanha a novela das sete, apesar de achá-la tenebrosa. Uma parte muito estranha de mim, mesmo firme em crer que existem abundâncias de caminhos felizes sem abundâncias de diplomas, sente culpas ocasionais de se haver afastado da universidade; mesmo avessa a dormir e sonhar, não quer levantar da cama; mesmo amicíssima de viagens, não fica 20 segundos mensais chateada por estar impedida de fazê-las; mesmo hostil a carnaval, acompanha e comenta detalhadamente os desfiles. Uma parte muito estranha de mim curte a Europa mais do que gostaria, ama francês mas se nega a fazer curso, detestaria ter de cuidar dum lugar enorme mas queria um castelo medieval, admira autores que não aprecia – uma coisa é a qualidade, mon amour, outra é a vontade literária –, sente saudades de algumas propagandas, tem preguiça de fazer aniversário porque a gente não se possui nessa data, não descarta pintar o apê inteiro em algum momento só para não ter de botar ninguém em casa (não, não é exclusividade dos tempos de pandemia), recusaria viajar no tempo a não ser que fosse para o futuro (essa minha parte mente, claramente; ela daria tudo para ir ao passado impedir os pais do genocida de se conhecerem, rolasse a borboletização histórica que rolasse). Uma parte muuuuuito estranha de mim não postou foto da vacina: timidez, além da AstraZeneca, fazendo efeito.

Uma parte de mim não tem jeito.

Nenhum comentário: