domingo, 2 de maio de 2021

De exílios


Hoje, parece, é o Dia da Limonada (Lemonade Day) para os brothers dos States, que celebram a curiosa data no primeiro domingo de maio, não me perguntem por quê. Foi só descobrir essa festa insólita que me ocorreu: eis algo que não posso celebrar sem crime de leso-estômago; minhas estruturas digestivas talvez não gastritas, mas certamente esofagitas, proíbem qualquer contatinho com limões, abacaxis, maracujás, acerolas e cítricos afins, de modo que a velha máxima do "fazer do limão uma limonada" nunca me pertenceu nem me pertencerá nunca. Desse não pertencimento nascido por motivos de acidez maior, a lembrança desenrolou outros, o que me põe aqui meditante sobre os tantos territórios humanos dos quais estou (definitivamente?) exilada.

Por exemplo: andar de bicicleta. Em verdade ainda não tentei a fundo, vejo aqueles filmes de crianças pedalando spielberguianamente pelos subúrbios e fico só na saudade do que não vivi, mui duvidosa de que viesse a ter a ginga essencial para não quebrar um fêmur. Precisa nem de duas rodas, aliás; de salto eu também não ando, inclusive acho estapafúrdio que alguém ande em sã consciência, a não ser que sejam pernas de pau usadas com intenções circenses ou limpadoras de teto – e não, dessa aberração de passar o dia sustentando o corpo num ângulo para o qual ele jamais foi projetado (falo do salto, naturalmente) eu não tenho nenhuma saudade. Nenhuma saudade, tampouco, da capacidade de dirigir automóveis que nunca tive ou terei (vê-se que minhas limitações de deslocamento não se atêm à questão do equilíbrio, ao menos do físico); fazer o quê? se o mero conceito de estar no controle dum veículo motorizado, articular um monte de movimentos simultâneos e me tornar uma potencial ameaça a qualquer erro já elimina toda possibilidade de tentativa? A ser sinceríssima, ao contrário do caso bicicleta, não há tentativa porque não há vontade; carros não me atraem – com exceção dos minúsculos, pela fofura –, eu não consigo reconhecer nenhum que não o bom e velho Fusquinha e amo demais a ausência dessa responsabilidade e dessa despesa. Sem dor alguma no coração: passo.

Ah, o passo – o meu precisa ser moderado, já que os pulmões não autorizam nem 30 segundos de corridinha. Também não me garantem sequer 2% de intimidade com ambientes aquáticos; fazer mergulho é inviável, pelo desespero que me dá aquela estranha respiração pela boca, e mesmo o nado é bastante temerário devido ao desconcerto pulmonar, aliado ao pânico de afundar indesejadamente. Sou capaz de sereiar de um lado a outro da piscina, se souber que posso ficar de pé em caso de urgência, serve? No mais, passarinha que sou, devo admitir que natações não são para o meu bico. Outros esportes não o são either, pelo menos os que demandam time; sou péssima de time, times me intimidam. Fico muitíssimo mais preocupada em não dar o mais absoluto vexame do que em jogar propriamente, e por sinal não me adapto de modo algum a competições – nem para assistir eu presto; provavelmente me ajustaria melhor até a atividades radicais que não implicassem nenhuma disputa. Nenhuma disputa e nenhum dever relativo ao sucesso ou fracasso alheio pesando DIRETAMENTE em minhas costas, horror que me afasta não só do esporte como, por exemplo, de qualquer possibilidade de interesse pela medicina ou mesmo pela maternidade: pelamor, não me exijam reflexos rápidos, decisões imediatas, habilidades a tirar de dentro do bolso, com plateia, com a bola vindo sei lá de onde, com gente esperando, olhando, buzinando, morrendo, dependendo, chorando. Me deixem com meu espaço e meu tempo de ir fazendo o que dá, do jeito que dá – prometo que o melhor possível.

"Caramba, então você não consegue fazer nada??" Não sejam rudes, alguma coisa eu consigo. Consigo encarar quase qualquer montanha-russa ou tirolesa (deslizaria com tranquilidade, sim, naquelas que vão duma parede à outra do desfiladeiro), provar quase qualquer comida que não seja viscosa nem esteja se mexendo, lavar roupa a contento, fazer arborismo, fazer ovos mexidos, dar aula para adolescentes, decorar os nomes dos alunos com relativa rapidez, reconhecer rostos e animais nas formas do granito com incrível facilidade, ler devorantemente, ler (apenas ler) em francês sem ter estudado a língua, escrever aqui todos os dias (perdão por isso). Não sei, é fato, se são habilidades muito prometedoras em caso de apocalipse zumbi, mas afinal é o que temos para hoje, pegar ou largar. Eu pego – e vou me esconder num qualquer cantinho.

Para quem cabe dentro de um livro, todo lugar é ninho.

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